segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Revelação



Ser cativo da própria liberdade... Escolher ser cativo da própria liberdade.


Não me sai da cabeça. Nem consigo escrever mais nada.
Foi um sopro que se transforma devagar em tumultuoso furacão dentro de mim.
Que mais fazes? Voas? Adivinhas o futuro? Vês o passado? Quebras maldições?
Senti o vento, como a Vianne. É altura de partir. E mudar. Estou condenada a ser cativa de uma liberdade. A voar no limiar de uma espada. A sentir um gume frio que não corta nem fere.

Quatro - Desaparecimento

Conheci o Gonçalo numa noite de festa. E é assim que me lembro dele. Era o primeiro ano de faculdade. Apesar de não ser muito dada a ir às festas da faculdade, naquela noite fui. Depois do jantar, tomei, como sempre, o anti-histamínico para as inexplicáveis e estranhas alergias que tinha naquela altura. Despedi-me do Rogério e disse-lhe que não sabia a que horas voltava. Nessa altura já quase não nos falávamos.
Cheguei à discoteca e fui ao bar pedir uma vodka com limão. Eu e uma amiga subimos ao primeiro andar para dançar um pouco e, quando acabei de beber disse-lhe que ia à casa de banho. Estava a sentir-me mal e não consegui perceber porquê.
Na casa de banho, molhei a cara e quando me vi ao espelho, percebi que estava tudo desfocado. Comecei a sentir-me mesmo mal e decidi ir ao andar de cima avisar a minha amiga.
A discoteca tinha uma escadaria enorme e estava cheia de gente. Comecei a cambalear e lembro-me apenas de me deixar cair para trás.
Quando abri os olhos estava um rapaz muito bonito a olhar para mim com um ar preocupado.
- Estás bem?
Não sei se lhe respondi.
- Ias caindo da escada abaixo. Queres que chame alguém?
- Eu estou com uma amiga, mas perdi-me dela. Não sei o que se passa. Só bebi uma vodka, mas estou mesmo mal disposta. Parece que bebi dez.
- A tua amiga está cá em cima?
- Acho que sim.
- Então eu ajudo-te a procurá-la. Queres ir ao hospital?
- Não, não. Quero ir embora. Olha, a minha amiga está ali. Vou ter com ela. Obrigada.
Fui ter com a minha amiga e desculpei-me com ela mas pedi-lhe para me levar a casa. Estava a sentir-me mesmo mal. Quando estava a sair da pista de dança, o rapaz veio ter comigo.
- Olha, fiquei mesmo preocupado contigo. Até estavas a revirar os olhos. Dá-me o teu número de telefone para eu te ligar amanhã. Para saber se estás bem.
Deitei-lhe um ar desconfiado.
- Está bem, pronto. Então eu dou-te o meu número. Mas por favor manda-me uma mensagem. Fiquei mesmo preocupado. Sou o Gonçalo.
- Sou a Maria.
Meti o papel dentro do bolso das calças e desci com a minha amiga.
Fui todo o caminho para casa com a cabeça do lado de fora da janela. Quando cheguei a casa, ainda mal disposta, fui a correr para a casa de banho. Vomitei até cair de joelhos no chão da casa de banho. Por fim, consegui arrastar-me até à sala e sentei-me no sofá. Não queria acordar o Rogério, senão ainda tinha de aguentar uma discussão.
Olhei para a mesa da sala e percebi a causa da minha indisposição. Os anti-histamínicos. Não devia ter bebido. Nem uma gota.
Tirei a roupa e do bolso das calças caiu um papel. Lembrei-me o que era e peguei no telefone.

“Olá. Já cheguei a casa. Estou melhor. Obrigada pela tua ajuda. Um beijinho. Maria.”

Pronto. Cumpri com a promessa e mandei uma mensagem ao Gonçalo. Foi bastante simpático o rapaz. Se não fosse ele tinha caído da escada abaixo…
No dia seguinte tive de ouvir o Rogério a refilar por causa da minha noitada. Que devia ter chegado a casa num belo estado para ter espalhado a roupa pela sala e ter adormecido no sofá. Ignorei-o. Até porque não me apetecia explicar-lhe o que tinha acontecido.
No fim desse dia recebi uma mensagem do Gonçalo.

“Olá Maria. Estás melhor? Obrigada por teres mandado a mensagem a dizer que tinhas chegado a casa. Fiquei mesmo preocupado. O que te aconteceu?”

Respondi-lhe e por uns dias esqueci o assunto.
Um dia, durante uma aula recebi uma mensagem dele a perguntar onde eu estava e se queria lanchar. Disse-lhe que podia ser e onde era a minha faculdade. Quando saí das aulas o Gonçalo estava à minha espera. E fomos lanchar. Conversámos bastante sobre cada um de nós e lembro-me distintamente de lhe ter dito que tinha namorado. Mas isso não pareceu afectar o Gonçalo. No fim do lanche, ele acompanhou-me a casa.
- Quando te vejo de novo?
- Não sei Gonçalo. Mas podemos lanchar de novo um destes dias.
- Então eu depois telefono-te. Mas para a próxima vais ter à minha faculdade.
E assim foi. No fim dessa semana fui ter com o Gonçalo à faculdade dele e fomos dar um passeio. Andámos de eléctrico, comemos os famosos pastéis, passeamos à beira-rio. A conversa parecia não se esgotar. E apesar de contrariar o caminho dele, o Gonçalo acompanhou-me a casa de novo.
Na semana seguinte, o Gonçalo foi de novo ter comigo à faculdade. E no dia a seguir. E nos próximos. E, de repente, todos os dias o Gonçalo me ia esperar à porta da sala para irmos lanchar. Dávamos passeios ao fim do dia e depois ele acompanhava-me a casa.
Um dia deu-me uma folha A4 dobrada em três, com um desenho. Desdobrei-a e vi uma foto dele. Atrás da foto tinha escrito:

“Maria, não há palavras para isto. Já sabes o que sinto por ti…”

Receando um avanço do Gonçalo, voltei a dizer-lhe:
- Mas Gonçalo, tu sabes que eu tenho namorado. Gosto muito de ti e de estar contigo. E deixas-me confusa em relação aos meus sentimentos. Mas eu tenho namorado. Eu não posso deixar o Rogério.
- Se estás confusa é porque não é com ele que tens de estar.
Fiquei sem resposta. Mas ignorei o aviso. E esperei que passasse.

Uns dias mais tarde, estava em casa com o Rogério, à noite e o meu telefone tocou. Era uma mensagem do Gonçalo:
“Estou cá em baixo. À tua porta. Desce. Preciso de te ver.”

- Vou comprar cigarros. Venho já.
- Agora Maria?
- Sim. Venho já.
Desci as escadas de par em par e corri para os braços estendidos do Gonçalo.
- Desculpa, mas tive saudades tuas.
- Tu és louco. O Rogério está lá em cima. Acha que eu vim comprar cigarros.
- E vais. Mas de caminho bebes um sumo comigo.
Quando cheguei a casa o Rogério já estava deitado.
- Não havia cigarros em Lisboa? Onde foste a esta hora, Maria?
- Ali ao café da rua de trás. Estava lá a vizinha ali do prédio da frente e fiquei para beber um café.
Era a primeira vez que mentia ao Rogério. Mas não queria partilhar com ele o que estava a acontecer. Apaixonei-me pelo Gonçalo. E não sabia que volta devia dar à história.
Continuei a encontrar-me com o Gonçalo, avisando-o de que estava errado encontrar-me com ele e que tinha de deixar de o ver. A resposta do Gonçalo era sempre a mesma. Mas as investidas acalmaram. O Gonçalo deixou de me ir buscar à faculdade e deixamos de nos ver. Uma semana depois, à noite, recebi uma mensagem do Gonçalo.

“Estou à tua porta. Desce. Deixa tudo. E fica comigo. Espero até às 11. Se não vieres, eu desisto e não te incomodo mais. Gosto de ti.”

Fiquei sentada no sofá, sem me mexer. Não tive coragem de ir à janela. Não me mexi durante a hora seguinte. Chorei baixinho durante essa hora. O Rogério nunca me perguntou o que se passava. Levantou-se e foi para a cama sem uma palavra. Nunca me perguntou nada. Às 11 e cinco recebi outra mensagem do Gonçalo.

“Não te esqueças que gosto muito de ti. Foi um prazer.”

E foi a última vez que tive notícias dele. Uns dias mais tarde, mais triste do que nunca, tentei ligar mas o telefone tinha sido desligado. Liguei para o irmão, que nunca atendeu as minhas chamadas. Passei dias inteiros à porta da faculdade dele. Nunca o vi. Nunca mais o encontrei.
Nos anos que se seguiram, lembrei-me do Gonçalo várias vezes, mas nunca me cruzei com ele. Nem uma única vez o vi num bar ou centro comercial. Imaginei tudo: que tivesse mudado de cidade, de país, que lhe tivesse acontecido alguma coisa… Cinco anos passaram desde essa última mensagem do Gonçalo.