quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Três - A proposta

- Bem, Maria, finalmente consigo conversar contigo.
- António se queria falar comigo assim tão urgentemente, podíamos ter marcado mais cedo.
- Não é assim tão urgente. Temos tempo. Mas é importante.
- Não me deixe a morrer de curiosidade!
- Prova este pão, é divino. Acho que nos podemos começar a tratar por tu, não concordas?
- Por mim, tudo bem. Como preferir.
- Prefiro que me trates por tu.
- Está bem. Diz lá, então, o que é importante mas não urgente para além do pão.
- É melhor contar-te antes que te liguem e sejas apanhada de surpresa. Fui contactado pela sede, que vai lançar um livro com os melhores restaurantes de Lisboa.
- E?
- E que por alguma razão tens mau feitio, mas continuas a trabalhar connosco. Querem que sejas tu a escrever sobre os restaurantes. Ou seja, querem que sejas tu a escrever o livro.
- Eu?
- Sim, Maria. Tu. A ideia é ser um livro sobre restaurantes, em que cada restaurante disponibiliza a sua receita mais famosa. E vai ter também a colaboração de um enólogo, que vai recomendar um vinho para cada receita.
- Mas isso é excelente!
- Vai ser óptimo. Mas há condições. Vão propor-te exclusividade. Connosco.
- Exclusividade?
- Sim. Deixas de trabalhar como free-lancer e passas a trabalhar em exclusivo para nós.
- Mas porquê a promoção? Há um “mas”?
- Não sei, diz-me tu. Na próxima segunda-feira tens uma reunião comigo e com os directores da sede. Vamos mostrar-te o contrato e as nossas propostas. Tens o fim de semana para pensar nisso.


Quase pronta para sair de casa, ando de um lado para o outro entre o quarto e o closet a escolher sapatos e brincos. Oiço o telefone e vejo que é a Inês.
- Bruxa! Então?
- Maria, querida. Desculpa, mas estamos 10 minutos atrasados. A mesa está reservada em teu nome, por isso quando chegares é só sentar. E vê o que te parece bom.
- Ok. Sem problema. Até já!
Sempre a mil, esta Inês. Finalmente opto pelos brincos do costume e decido que me maquilho no caminho. Estou em pulgas para sair de casa. Pego no telefone, no bloco de apontamentos e na bolsa de maquilhagem e enfio tudo dentro da mala. Ao sair, olho de novo para o caderno que comprei no início da semana. Depois, penso, preocupo-me contigo. Hoje apetece-me mesmo é apreciar a companhia dos meus amigos e beber uns Mai-Tai.
Nos semáforos vou pondo lápis de olhos, máscara e gloss. Chego ao restaurante, como sempre, com 5 minutos de antecedência. Sou meticulosamente pontual e chego sempre mais cedo. Ainda tenho pela frente pelo menos 20 minutos de espera, que os 10 minutos da Inês e do João são sempre mais longos.
Uma senhora muito simpática recebe-me no lounge do restaurante e digo-lhe o meu nome. Ela pergunta-me se não prefiro tomar alguma coisa antes, no bar. Sim, claro, vou já começar a aquecer. Sento-me nos sofás do lounge bar, bastante parecidos com os meus. E lembro-me do caderno em cima da chaise-longue. Tenho de o mudar de sítio, senão qualquer dia não me consigo sentar no meu cantinho.
À porta aparece o Ricardo, sempre bem-disposto.
- Olá Maria! Estás sozinha?
- A Inês e o João estão atrasados, como sempre! E eu cheguei mais cedo, como é costume.
- O que é que estás a beber? Tem muito bom aspecto.
- Mai-Tai. É óptimo. Queres?
- Quero. Deixa-me provar.
- Então e como vai o emprego novo? Tudo bem? E a mudança para a casa nova? Se precisares de ajuda tu diz, que a malta pede umas pizzas, compra umas cervejitas e vai tudo para tua casa.
- Em princípio mudo no fim do mês. o emprego novo é fixe. Estou a gostar. E tu? novidades?
- Nada de mais. Trabalho e mais trabalho. Tive uma proposta interessante hoje. Fiquei de pensar no fim de semana.
- E é boa?
- É. Mas tenho de ver se me compensa. Estou inclinada para o sim. Bem, vou ligar à Sofia, que também deve estar atrasada.
Procuro o telefone no fundo da mala e vejo que tenho uma mensagem escrita do Miguel Esteves.

“Amanhã. Não te esqueças. Beijo :)”

Não pude deixar de sorrir.
- Está, Sofia? Então? Onde andas?
- Ai, querida, desculpa. Eu e o Manel estamos atrasados. Mais 10 minutos, sim? Estás sozinha?
- Não, felizmente o Ricardo também veio mais cedo.
- Ok. Então até já.
Volto a ver a mensagem do Miguel. Mas eu não me ia esquecer. Porquê a insistência?
- Bem, Ricardo, hoje atrasou-se tudo. Acho que nos podemos ir sentar e começar a escolher. Vou só fumar mais um cigarro.

- Olá, olá! Desculpem o atraso! Estás bem, querida? Querias contar-me alguma coisa? Já aqui estão há muito tempo?
- Olá! Já falamos.
As perguntas incessantes da Inês, àquela velocidade que lhe é característica, às vezes deixam-me zonza. E normalmente quem anda a mil sou eu. Mas não ao fim de semana… O João vem na minha direcção, com um olhar malicioso e aposto que sei o que me vai perguntar.
- Olá miúda! Então, chegaste ao mesmo tempo que o Ricardo? Vieram juntos? - (piscar de olhos…).
- Não, João, não viemos juntos. E chega dessa conversa, que já me estás a chatear!
- Mau-feitio!
Pronto, já respondi mal ao namorado da Inês. Vou ter de lhe pedir desculpa.
Finalmente, chegam a Sofia e o Manel.
O jantar foi animadíssimo e saímos todos muito bem dispostos. Só eu estava relutante em ir para casa. Ultimamente, a ideia de adormecer deixa-me angustiada. Talvez por causa do pesadelo que assombra constantemente as minhas noites. Enquanto caminho até ao carro, penso nas coisas que tenho de fazer amanhã. Nada de mais. A não ser, claro, a saída à noite com os Miguéis.
Entro em casa e a primeira coisa que faço é mudar o caderno de lugar. Sinto vontade de escrever nele, mas tenho os pensamentos desorganizados. Oiço o aviso de mensagem escrita no telefone. É a Sofia.

“Gostámos muito do jantar. Mas achei-te tensa agora no fim… estás bem?”

Respondo que sim. E estou. Mas alguma coisa me deixa inquieta e não percebo bem o que.
Ligo o computador e escrevo de uma assentada a crónica da próxima semana. Sobre o novo restaurante onde fui hoje.
Já passa das 3 da manhã quando, exausta, me deito na cama. Adormeço quase imediatamente.


Por mais que corra, sinto que não vou conseguir escapar. Eu fujo, mas estou quase a ser apanhada por aquilo de que tenho medo. Estou aterrorizada e não tenho coragem de olhar para trás. Estou quase a ser apanhada. É agora. Vai tocar-me. Grito de desespero e medo.
Acordei a gritar. Em pânico, sento-me na cama e tento pensar que é só um pesadelo, que não está a acontecer. Mas não consigo. Estou a tremer de medo e a chorar. Está aqui, pensei eu. Está no meu quarto.
Uns segundos mais tarde, consigo finalmente acalmar-me e levanto-me para ir a casa de banho. Vejo-me ao espelho e percebo que tenho os olhos esbugalhados. Mas o que será que me mete tanto medo. Não consigo lembrar-me de quase nada, mas acordo assim, com terror de alguma coisa da qual fujo.
Tenho medo de noite, agora. Parece que já dormi demais e ainda só são 5 da manhã. Falta tanto para amanhecer… queria que a noite acabasse depressa para não ter mais pesadelos. Deito-me de novo, e ao fim de algum tempo adormeço, emocionalmente esgotada.
Mais uma vez sou acordada pelo telefone, mas cancelo a chamada sem ver quem é. O meu telefona toca incessantemente todo o dia, todos os dias. Levanto-me e arrasto-me para o duche a pensar nas compras que preciso de fazer. Quando acabo de me arranjar o telefone toca de novo.
- Maria, toca a levantar! Tenho uma coisa gira para fazermos hoje. Vamos passear. Eu, o João e tu!
- Onde?
- A Sintra! Vamos comer uns bolinhos e ver museus. Às duas em minha casa!
- Está bem. Mas não quero vir tarde porque tenho coisas combinadas à noite.
- Com quem?
- Oh Inês! Disse-te ontem. Vou encontrar-me com os Miguéis, o Esteves e o Santos. Aqueles meus colegas de curso.
- Já me lembro. Bem, mas não te preocupes porque nós também temos um jantar em casa de uns amigos do João e também tenho coisas a fazer antes de ir. Quero levar uma sobremesa e umas entradas.
A Inês e as coisinhas caseiras dela. Tem um ar maternal e gosta de fazer estes mimos às pessoas. Tenho a sensação que nasceu para o papel de esposa e mãe dedicada. E não vê, secretamente, a hora desse dia chegar.Enquanto me arranjava, lembrei-me, sem perceber por que processo mental, do Gonçalo. Um episódio que ajuda ainda mais à minha dificuldade em compreender desaparecimentos.

4 comentários:

Anónimo disse...

Sim. Já me ocorreu, numa manhã clara de Sol que talvez já tivesse sido tua mãe.
Quem sabe? Eu gostava!

LUIS MILHANO (Lumife) disse...

Voltarei para ler melhor este teu trabalho.

Vinha dizer-te se podias passar pelo "Beja". As crianças agradecem.

Bom fim de semana.

Beijos

Anónimo disse...

Continua excelente;)
Duas pequenas correcções:

"(...)apanhada por aquilo de te (que) tenho medo."

"Já aqui estão à (há) muito tempo?"

Bjs,
L.

Anónimo disse...

[Pai] Isso quer dizer que seriamos casados?