segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Revelação



Ser cativo da própria liberdade... Escolher ser cativo da própria liberdade.


Não me sai da cabeça. Nem consigo escrever mais nada.
Foi um sopro que se transforma devagar em tumultuoso furacão dentro de mim.
Que mais fazes? Voas? Adivinhas o futuro? Vês o passado? Quebras maldições?
Senti o vento, como a Vianne. É altura de partir. E mudar. Estou condenada a ser cativa de uma liberdade. A voar no limiar de uma espada. A sentir um gume frio que não corta nem fere.

Quatro - Desaparecimento

Conheci o Gonçalo numa noite de festa. E é assim que me lembro dele. Era o primeiro ano de faculdade. Apesar de não ser muito dada a ir às festas da faculdade, naquela noite fui. Depois do jantar, tomei, como sempre, o anti-histamínico para as inexplicáveis e estranhas alergias que tinha naquela altura. Despedi-me do Rogério e disse-lhe que não sabia a que horas voltava. Nessa altura já quase não nos falávamos.
Cheguei à discoteca e fui ao bar pedir uma vodka com limão. Eu e uma amiga subimos ao primeiro andar para dançar um pouco e, quando acabei de beber disse-lhe que ia à casa de banho. Estava a sentir-me mal e não consegui perceber porquê.
Na casa de banho, molhei a cara e quando me vi ao espelho, percebi que estava tudo desfocado. Comecei a sentir-me mesmo mal e decidi ir ao andar de cima avisar a minha amiga.
A discoteca tinha uma escadaria enorme e estava cheia de gente. Comecei a cambalear e lembro-me apenas de me deixar cair para trás.
Quando abri os olhos estava um rapaz muito bonito a olhar para mim com um ar preocupado.
- Estás bem?
Não sei se lhe respondi.
- Ias caindo da escada abaixo. Queres que chame alguém?
- Eu estou com uma amiga, mas perdi-me dela. Não sei o que se passa. Só bebi uma vodka, mas estou mesmo mal disposta. Parece que bebi dez.
- A tua amiga está cá em cima?
- Acho que sim.
- Então eu ajudo-te a procurá-la. Queres ir ao hospital?
- Não, não. Quero ir embora. Olha, a minha amiga está ali. Vou ter com ela. Obrigada.
Fui ter com a minha amiga e desculpei-me com ela mas pedi-lhe para me levar a casa. Estava a sentir-me mesmo mal. Quando estava a sair da pista de dança, o rapaz veio ter comigo.
- Olha, fiquei mesmo preocupado contigo. Até estavas a revirar os olhos. Dá-me o teu número de telefone para eu te ligar amanhã. Para saber se estás bem.
Deitei-lhe um ar desconfiado.
- Está bem, pronto. Então eu dou-te o meu número. Mas por favor manda-me uma mensagem. Fiquei mesmo preocupado. Sou o Gonçalo.
- Sou a Maria.
Meti o papel dentro do bolso das calças e desci com a minha amiga.
Fui todo o caminho para casa com a cabeça do lado de fora da janela. Quando cheguei a casa, ainda mal disposta, fui a correr para a casa de banho. Vomitei até cair de joelhos no chão da casa de banho. Por fim, consegui arrastar-me até à sala e sentei-me no sofá. Não queria acordar o Rogério, senão ainda tinha de aguentar uma discussão.
Olhei para a mesa da sala e percebi a causa da minha indisposição. Os anti-histamínicos. Não devia ter bebido. Nem uma gota.
Tirei a roupa e do bolso das calças caiu um papel. Lembrei-me o que era e peguei no telefone.

“Olá. Já cheguei a casa. Estou melhor. Obrigada pela tua ajuda. Um beijinho. Maria.”

Pronto. Cumpri com a promessa e mandei uma mensagem ao Gonçalo. Foi bastante simpático o rapaz. Se não fosse ele tinha caído da escada abaixo…
No dia seguinte tive de ouvir o Rogério a refilar por causa da minha noitada. Que devia ter chegado a casa num belo estado para ter espalhado a roupa pela sala e ter adormecido no sofá. Ignorei-o. Até porque não me apetecia explicar-lhe o que tinha acontecido.
No fim desse dia recebi uma mensagem do Gonçalo.

“Olá Maria. Estás melhor? Obrigada por teres mandado a mensagem a dizer que tinhas chegado a casa. Fiquei mesmo preocupado. O que te aconteceu?”

Respondi-lhe e por uns dias esqueci o assunto.
Um dia, durante uma aula recebi uma mensagem dele a perguntar onde eu estava e se queria lanchar. Disse-lhe que podia ser e onde era a minha faculdade. Quando saí das aulas o Gonçalo estava à minha espera. E fomos lanchar. Conversámos bastante sobre cada um de nós e lembro-me distintamente de lhe ter dito que tinha namorado. Mas isso não pareceu afectar o Gonçalo. No fim do lanche, ele acompanhou-me a casa.
- Quando te vejo de novo?
- Não sei Gonçalo. Mas podemos lanchar de novo um destes dias.
- Então eu depois telefono-te. Mas para a próxima vais ter à minha faculdade.
E assim foi. No fim dessa semana fui ter com o Gonçalo à faculdade dele e fomos dar um passeio. Andámos de eléctrico, comemos os famosos pastéis, passeamos à beira-rio. A conversa parecia não se esgotar. E apesar de contrariar o caminho dele, o Gonçalo acompanhou-me a casa de novo.
Na semana seguinte, o Gonçalo foi de novo ter comigo à faculdade. E no dia a seguir. E nos próximos. E, de repente, todos os dias o Gonçalo me ia esperar à porta da sala para irmos lanchar. Dávamos passeios ao fim do dia e depois ele acompanhava-me a casa.
Um dia deu-me uma folha A4 dobrada em três, com um desenho. Desdobrei-a e vi uma foto dele. Atrás da foto tinha escrito:

“Maria, não há palavras para isto. Já sabes o que sinto por ti…”

Receando um avanço do Gonçalo, voltei a dizer-lhe:
- Mas Gonçalo, tu sabes que eu tenho namorado. Gosto muito de ti e de estar contigo. E deixas-me confusa em relação aos meus sentimentos. Mas eu tenho namorado. Eu não posso deixar o Rogério.
- Se estás confusa é porque não é com ele que tens de estar.
Fiquei sem resposta. Mas ignorei o aviso. E esperei que passasse.

Uns dias mais tarde, estava em casa com o Rogério, à noite e o meu telefone tocou. Era uma mensagem do Gonçalo:
“Estou cá em baixo. À tua porta. Desce. Preciso de te ver.”

- Vou comprar cigarros. Venho já.
- Agora Maria?
- Sim. Venho já.
Desci as escadas de par em par e corri para os braços estendidos do Gonçalo.
- Desculpa, mas tive saudades tuas.
- Tu és louco. O Rogério está lá em cima. Acha que eu vim comprar cigarros.
- E vais. Mas de caminho bebes um sumo comigo.
Quando cheguei a casa o Rogério já estava deitado.
- Não havia cigarros em Lisboa? Onde foste a esta hora, Maria?
- Ali ao café da rua de trás. Estava lá a vizinha ali do prédio da frente e fiquei para beber um café.
Era a primeira vez que mentia ao Rogério. Mas não queria partilhar com ele o que estava a acontecer. Apaixonei-me pelo Gonçalo. E não sabia que volta devia dar à história.
Continuei a encontrar-me com o Gonçalo, avisando-o de que estava errado encontrar-me com ele e que tinha de deixar de o ver. A resposta do Gonçalo era sempre a mesma. Mas as investidas acalmaram. O Gonçalo deixou de me ir buscar à faculdade e deixamos de nos ver. Uma semana depois, à noite, recebi uma mensagem do Gonçalo.

“Estou à tua porta. Desce. Deixa tudo. E fica comigo. Espero até às 11. Se não vieres, eu desisto e não te incomodo mais. Gosto de ti.”

Fiquei sentada no sofá, sem me mexer. Não tive coragem de ir à janela. Não me mexi durante a hora seguinte. Chorei baixinho durante essa hora. O Rogério nunca me perguntou o que se passava. Levantou-se e foi para a cama sem uma palavra. Nunca me perguntou nada. Às 11 e cinco recebi outra mensagem do Gonçalo.

“Não te esqueças que gosto muito de ti. Foi um prazer.”

E foi a última vez que tive notícias dele. Uns dias mais tarde, mais triste do que nunca, tentei ligar mas o telefone tinha sido desligado. Liguei para o irmão, que nunca atendeu as minhas chamadas. Passei dias inteiros à porta da faculdade dele. Nunca o vi. Nunca mais o encontrei.
Nos anos que se seguiram, lembrei-me do Gonçalo várias vezes, mas nunca me cruzei com ele. Nem uma única vez o vi num bar ou centro comercial. Imaginei tudo: que tivesse mudado de cidade, de país, que lhe tivesse acontecido alguma coisa… Cinco anos passaram desde essa última mensagem do Gonçalo.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Três - A proposta

- Bem, Maria, finalmente consigo conversar contigo.
- António se queria falar comigo assim tão urgentemente, podíamos ter marcado mais cedo.
- Não é assim tão urgente. Temos tempo. Mas é importante.
- Não me deixe a morrer de curiosidade!
- Prova este pão, é divino. Acho que nos podemos começar a tratar por tu, não concordas?
- Por mim, tudo bem. Como preferir.
- Prefiro que me trates por tu.
- Está bem. Diz lá, então, o que é importante mas não urgente para além do pão.
- É melhor contar-te antes que te liguem e sejas apanhada de surpresa. Fui contactado pela sede, que vai lançar um livro com os melhores restaurantes de Lisboa.
- E?
- E que por alguma razão tens mau feitio, mas continuas a trabalhar connosco. Querem que sejas tu a escrever sobre os restaurantes. Ou seja, querem que sejas tu a escrever o livro.
- Eu?
- Sim, Maria. Tu. A ideia é ser um livro sobre restaurantes, em que cada restaurante disponibiliza a sua receita mais famosa. E vai ter também a colaboração de um enólogo, que vai recomendar um vinho para cada receita.
- Mas isso é excelente!
- Vai ser óptimo. Mas há condições. Vão propor-te exclusividade. Connosco.
- Exclusividade?
- Sim. Deixas de trabalhar como free-lancer e passas a trabalhar em exclusivo para nós.
- Mas porquê a promoção? Há um “mas”?
- Não sei, diz-me tu. Na próxima segunda-feira tens uma reunião comigo e com os directores da sede. Vamos mostrar-te o contrato e as nossas propostas. Tens o fim de semana para pensar nisso.


Quase pronta para sair de casa, ando de um lado para o outro entre o quarto e o closet a escolher sapatos e brincos. Oiço o telefone e vejo que é a Inês.
- Bruxa! Então?
- Maria, querida. Desculpa, mas estamos 10 minutos atrasados. A mesa está reservada em teu nome, por isso quando chegares é só sentar. E vê o que te parece bom.
- Ok. Sem problema. Até já!
Sempre a mil, esta Inês. Finalmente opto pelos brincos do costume e decido que me maquilho no caminho. Estou em pulgas para sair de casa. Pego no telefone, no bloco de apontamentos e na bolsa de maquilhagem e enfio tudo dentro da mala. Ao sair, olho de novo para o caderno que comprei no início da semana. Depois, penso, preocupo-me contigo. Hoje apetece-me mesmo é apreciar a companhia dos meus amigos e beber uns Mai-Tai.
Nos semáforos vou pondo lápis de olhos, máscara e gloss. Chego ao restaurante, como sempre, com 5 minutos de antecedência. Sou meticulosamente pontual e chego sempre mais cedo. Ainda tenho pela frente pelo menos 20 minutos de espera, que os 10 minutos da Inês e do João são sempre mais longos.
Uma senhora muito simpática recebe-me no lounge do restaurante e digo-lhe o meu nome. Ela pergunta-me se não prefiro tomar alguma coisa antes, no bar. Sim, claro, vou já começar a aquecer. Sento-me nos sofás do lounge bar, bastante parecidos com os meus. E lembro-me do caderno em cima da chaise-longue. Tenho de o mudar de sítio, senão qualquer dia não me consigo sentar no meu cantinho.
À porta aparece o Ricardo, sempre bem-disposto.
- Olá Maria! Estás sozinha?
- A Inês e o João estão atrasados, como sempre! E eu cheguei mais cedo, como é costume.
- O que é que estás a beber? Tem muito bom aspecto.
- Mai-Tai. É óptimo. Queres?
- Quero. Deixa-me provar.
- Então e como vai o emprego novo? Tudo bem? E a mudança para a casa nova? Se precisares de ajuda tu diz, que a malta pede umas pizzas, compra umas cervejitas e vai tudo para tua casa.
- Em princípio mudo no fim do mês. o emprego novo é fixe. Estou a gostar. E tu? novidades?
- Nada de mais. Trabalho e mais trabalho. Tive uma proposta interessante hoje. Fiquei de pensar no fim de semana.
- E é boa?
- É. Mas tenho de ver se me compensa. Estou inclinada para o sim. Bem, vou ligar à Sofia, que também deve estar atrasada.
Procuro o telefone no fundo da mala e vejo que tenho uma mensagem escrita do Miguel Esteves.

“Amanhã. Não te esqueças. Beijo :)”

Não pude deixar de sorrir.
- Está, Sofia? Então? Onde andas?
- Ai, querida, desculpa. Eu e o Manel estamos atrasados. Mais 10 minutos, sim? Estás sozinha?
- Não, felizmente o Ricardo também veio mais cedo.
- Ok. Então até já.
Volto a ver a mensagem do Miguel. Mas eu não me ia esquecer. Porquê a insistência?
- Bem, Ricardo, hoje atrasou-se tudo. Acho que nos podemos ir sentar e começar a escolher. Vou só fumar mais um cigarro.

- Olá, olá! Desculpem o atraso! Estás bem, querida? Querias contar-me alguma coisa? Já aqui estão há muito tempo?
- Olá! Já falamos.
As perguntas incessantes da Inês, àquela velocidade que lhe é característica, às vezes deixam-me zonza. E normalmente quem anda a mil sou eu. Mas não ao fim de semana… O João vem na minha direcção, com um olhar malicioso e aposto que sei o que me vai perguntar.
- Olá miúda! Então, chegaste ao mesmo tempo que o Ricardo? Vieram juntos? - (piscar de olhos…).
- Não, João, não viemos juntos. E chega dessa conversa, que já me estás a chatear!
- Mau-feitio!
Pronto, já respondi mal ao namorado da Inês. Vou ter de lhe pedir desculpa.
Finalmente, chegam a Sofia e o Manel.
O jantar foi animadíssimo e saímos todos muito bem dispostos. Só eu estava relutante em ir para casa. Ultimamente, a ideia de adormecer deixa-me angustiada. Talvez por causa do pesadelo que assombra constantemente as minhas noites. Enquanto caminho até ao carro, penso nas coisas que tenho de fazer amanhã. Nada de mais. A não ser, claro, a saída à noite com os Miguéis.
Entro em casa e a primeira coisa que faço é mudar o caderno de lugar. Sinto vontade de escrever nele, mas tenho os pensamentos desorganizados. Oiço o aviso de mensagem escrita no telefone. É a Sofia.

“Gostámos muito do jantar. Mas achei-te tensa agora no fim… estás bem?”

Respondo que sim. E estou. Mas alguma coisa me deixa inquieta e não percebo bem o que.
Ligo o computador e escrevo de uma assentada a crónica da próxima semana. Sobre o novo restaurante onde fui hoje.
Já passa das 3 da manhã quando, exausta, me deito na cama. Adormeço quase imediatamente.


Por mais que corra, sinto que não vou conseguir escapar. Eu fujo, mas estou quase a ser apanhada por aquilo de que tenho medo. Estou aterrorizada e não tenho coragem de olhar para trás. Estou quase a ser apanhada. É agora. Vai tocar-me. Grito de desespero e medo.
Acordei a gritar. Em pânico, sento-me na cama e tento pensar que é só um pesadelo, que não está a acontecer. Mas não consigo. Estou a tremer de medo e a chorar. Está aqui, pensei eu. Está no meu quarto.
Uns segundos mais tarde, consigo finalmente acalmar-me e levanto-me para ir a casa de banho. Vejo-me ao espelho e percebo que tenho os olhos esbugalhados. Mas o que será que me mete tanto medo. Não consigo lembrar-me de quase nada, mas acordo assim, com terror de alguma coisa da qual fujo.
Tenho medo de noite, agora. Parece que já dormi demais e ainda só são 5 da manhã. Falta tanto para amanhecer… queria que a noite acabasse depressa para não ter mais pesadelos. Deito-me de novo, e ao fim de algum tempo adormeço, emocionalmente esgotada.
Mais uma vez sou acordada pelo telefone, mas cancelo a chamada sem ver quem é. O meu telefona toca incessantemente todo o dia, todos os dias. Levanto-me e arrasto-me para o duche a pensar nas compras que preciso de fazer. Quando acabo de me arranjar o telefone toca de novo.
- Maria, toca a levantar! Tenho uma coisa gira para fazermos hoje. Vamos passear. Eu, o João e tu!
- Onde?
- A Sintra! Vamos comer uns bolinhos e ver museus. Às duas em minha casa!
- Está bem. Mas não quero vir tarde porque tenho coisas combinadas à noite.
- Com quem?
- Oh Inês! Disse-te ontem. Vou encontrar-me com os Miguéis, o Esteves e o Santos. Aqueles meus colegas de curso.
- Já me lembro. Bem, mas não te preocupes porque nós também temos um jantar em casa de uns amigos do João e também tenho coisas a fazer antes de ir. Quero levar uma sobremesa e umas entradas.
A Inês e as coisinhas caseiras dela. Tem um ar maternal e gosta de fazer estes mimos às pessoas. Tenho a sensação que nasceu para o papel de esposa e mãe dedicada. E não vê, secretamente, a hora desse dia chegar.Enquanto me arranjava, lembrei-me, sem perceber por que processo mental, do Gonçalo. Um episódio que ajuda ainda mais à minha dificuldade em compreender desaparecimentos.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Dois - A Sombra

Estou a correr, a fugir de alguma coisa que não distingo. Mas corro sem olhar para trás, angustiada com os passos que oiço atrás de mim. Não sei o que é, mas a ideia de olhar aterra-me ainda mais. Prefiro não saber. Oiço uma música electrónica estranha e demoro a perceber o que é. O som torna-se mais alto e percebo que é o toque do telefone. Acordo e olho para a mesa de cabeceira. O meu telefone está a tocar e gira sobre o tampo, com a vibração.
- Sim? – tento parecer o mais acordada possível. Nem sei que horas são.
- Maria, estavas a dormir? Desculpa. Queres que ligue mais logo?
- Não querida. Diz. Passa-se alguma coisa? – a minha voz é transparente para a Inês, que tão bem me conhece.
- Não se passa nada. Eu é que já estou a mil e não me lembrei dos teus horários. Mas agora que te acordei, toca a levantar! Está um dia lindo. Tinha pensado em fazer um jantar amanhã à noite. Tinha pensado em irmos todos: a Sofia e o Manel, eu e o João, tu e o Ricardo…
- Eu conheço esse tom de voz, Inês! Já estás outra vez com ideias de me juntar com o Ricardo? Depois vou ter que te ouvir a noite toda a fazer o arranjinho. A ti e ao espertinho do João!
- Não te zangues. O Ricardo gosta tanto de ti! Porque não vais tomar um café com ele. Ele ia adorar.
- Ai, que chata que tu és! Falas tanto logo de manhã e dizes tantos disparates… Já te disse que gosto muito do Ricardo. Mas não assim. E quanto mais tu e o teu querido me chateiam, mais me apetece mandar-vos dar uma volta!
- Pronto, pronto, não te zangues. Mas olha que vocês se dão muito bem.
- Inês! A que horas é o jantar? E onde?
- Nove horas. Vamos àquele sítio novo de te falei a semana passada. Sabes? De inspiração oriental. Tens a morada, certo?
- Certo. Nove horas lá, então. Beijo.
- Até amanhã, resmungona!
Mais um restaurante de inspiração oriental. Não me deve servir de muita inspiração para o trabalho. Hoje tenho de passar na redacção. Devem esperar-me mais uns quantos convites para inaugurações de restaurantes ou empresas de catering. E o director, que a esta altura me vai perguntar pela próxima crónica.
Recordo-me do pesadelo do qual a Inês me despertou e senti um nó no estômago. De que fugia eu? Há semanas que este pesadelo me atormenta e desgasta. E quando acordo fica a sensação de que se olhar para trás, algo de terrível acontece.
Decidida a esquecer o pesadelo, levanto-me de um pulo e dirijo-me a casa de banho. Olho o meu rosto, longamente, no espelho. Estou com um ar esgotado. Depois de um duche revigorante corro de novo para o quarto para atender o telefone. Nem por acaso, é o director.
- Está sim?
- Maria, bons dias! Como está a melhor cozinheira de Lisboa?
- Olá António, bom dia. Aconteceu alguma coisa?
- Nada, nada. Estava só a pensar se hoje vamos ter o prazer de a ver na redacção. A sua secretária está cheia de correio. E estamos ansiosos para saber novidades.
- Novidades? Ah, a nova crónica. Sim, António, não se preocupe. Estou a tratar disso. Na sexta-feira vou a um novo restaurante de inspiração oriental que me parece muito bom.
- Sim, claro. Não estou nada preocupado. Já sei que nos vai fazer uma belíssima descrição do espaço e dos sabores. E vai sozinha?
- Vou com uns amigos.
- Que pena. Quer dizer, se fosse sozinha eu não me importava de lhe fazer companhia.
Pois claro que não…
- Oh António, obrigada. Mas de facto ainda há pouco uma amiga me ligou a confirmar.
- Talvez numa próxima ocasião.
- Talvez.
- Então, diz-me que hoje vai passar pela redacção?
- Sim, vou. Ver o correio e os colegas.
- E o director!
- Claro, António. A si também. Não se preocupe. Falamos mais logo.
- Assim sendo, até logo.
Não se importava de me fazer companhia. O António não perde uma oportunidade de me mostrar que gostava de sair comigo. Não há paciência, às vezes. Bem, tomo um café logo à tarde com ele, para ver se acalma os ânimos.
Entro no closet e decido o que vou vestir. O pesadelo já não me assombra, nem a conversa da Inês, que tenta à viva força fazer-me arranjinhos com o Ricardo. Conheci o Ricardo num jantar muito animado em casa da Inês. E desde essa altura que a minha amiga e o namorado mandam bocas constantes acerca dele. Gosto muito do Ricardo. É divertido, simples, simpático e uma boa companhia para os copos, petiscos e gargalhadas. Ponto. Há meses que os meus amigos me dizem para começar a sair com alguém, que devia arranjar um namorado, bla, bla, bla… A verdade é que há muitos meses que não tenho nenhuma relação estável. De facto, há meses que não tenho relação nenhuma. Mas já cheguei ao ponto em que isso não me angustia. Não estou à procura de namorado nenhum e não preciso de ninguém.
Bastante mal disposta, saio de casa e dirijo-me ao café do costume. O senhor Abílio olhou para a minha cara e já percebeu que hoje não estou para grandes conversas. Assim que me sento ao balcão, já o meu café está a sair. Assim que me vê chegar, tira uma chávena do frigorífico e tira o meu primeiro de muitos cafés.
- Bom dia menina Maria. Hoje vem com um ar cansado.
- Acha? Dormi mal.
- Sorria! Fica mais bonita. Já viu quem ali está?
Olho para trás e já sei o que o senhor Abílio me vai dizer…
- Hoje está cá o enfermeiro. Todos os dias ele vinha mais ou menos à mesma hora. E desde que a viu aqui a primeira vez, mudou a hora e aparece mais tarde.
- Não se ponha com ideias e deixe lá o rapaz.
Até o senhor Abílio parece achar que preciso de um namorado. Faço um sorriso amarelo indisfarçável e deixo o dinheiro em cima do balcão.
Desço a rua, irritada com a conspiração dos meus amigos armados em Cupido, e entro no carro. Vejo que tenho um papel no pára-brisas e fico ainda mais irritada. Se há coisa que odeio é que me deixem publicidade. Volto a sair do carro e percebo que há uma coisa que me chateia mais que a publicidade: multas de estacionamento. Pelo menos esta é da polícia. E não dos parasitas que infestaram a cidade ilegitimamente. Esta pago porque eles têm toda a razão.
Conduzo, como sempre, a uma velocidade louca e num instante chego à redacção. Contrariada, muito contrariada, lá deixo umas moedas no parquímetro.
Cruzo-me com a Sofia no elevador, que vai a caminho de uma reunião. Conheci a Sofia aqui no trabalho. E a empatia mútua foi imediata. Hoje somos inseparáveis, como irmãs. Sendo que ela é a mana mais velha.
- Miúda, como estás?
- Sofia! Bem. E tu?
- Óptima! Estás com um ar cansado. Passa-se alguma coisa?
- Estou cansada. E muito irritada. A Inês e os arranjinhos dela. As investidas de quem nós sabemos logo a seguir. Os arranjinhos do senhor do café. Uma multa de estacionamento… Isto não está fácil hoje!
- Tem calma e inspira. Se te irritas baixas as tuas defesas. Bem, vou para a reunião. Vai ter com o António, que ainda não parou de falar em ti hoje. Parece que tem qualquer coisa importante para te dizer.
Rebolo os olhos e rimos as duas.
- Ai, que seca. Primeiro o correio. Já lá vou.
- Até já!
Passo pelo corredor e cumprimento os meus colegas com um desmaiado “bom dia”. As vantagens de ser expressiva é que todos percebem que hoje não estou nos meus dias e não estou para grandes conversas.
A minha secretária é o caos. Pilhas de papéis do lado direito. Outros tantos do lado esquerdo. Cheia de livros que me oferecem. Ao centro, à frente do monitor, está a correspondência. Convites e mais convites. Um postal para levantar uma encomenda nos Correios, que já não me lembro o que é. No monitor, post-its com recados. No teclado, um cartão do António.

“Abres o correio depois. Estou no meu gabinete. Agora, Maria!”

O homem adivinha os meus pensamentos com certeza.
- Olá António.
- Maria, como estás? Desde há pouco…
- Irritada. Aliás, genuinamente mal disposta. Queria falar comigo? Vai-me dar uma descasca?
- Que ideia Maria! Não me dá motivos para isso. Mas preciso de falar consigo. Almoçamos?
Lá está ele. Bem, tenho de ir. Parece importante.
- Sim, claro. A que horas?
- Daqui a uma hora passo pela tua sala.
Pelo menos está bem disposto. Era só o que me faltava era ouvir o António a dizer que algum restaurante não tinha gostado da minha crítica. Oiço muitas vezes que sou bruta e arrogante. Quando não gosto de uma coisa, não gosto mesmo.
Ligo o computador e abro a página do e-mail. O Miguel está on-line, que bom. Enquanto vou abrindo as cartas, falo com o Miguel no chat.Conheci o Miguel Esteves na faculdade. Fomos colegas de curso, mas não da mesma turma. Nem do mesmo ano. Foi das primeiras pessoas que conheci na faculdade e das poucas com quem ainda tenho algum contacto. Falamos muitas vezes no chat e já pensámos em ir tomar um café. E claro, combinámos também com o Miguel Santos, o amigo inseparável do Esteves. Ficou marcado para sábado. Uma sessão de copos no Bairro Alto com os dois Miguéis.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Um abraço

Olha para o rio e inspira. Vais perceber que não estás só.

Obrigada, mais uma vez.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Um - A lua

Pareceu-me a coisa mais acertada que tinha de fazer. Ainda parece. E está cada vez mais claro na minha mente que é isto mesmo que eu quero. Ainda não percebi muito bem porquê, mas sei que é por aqui.
Há muitos dias que não consigo escrever uma linha e já tenho o director da revista à perna. Por mais que estique os prazos e escreva no limite do tempo, sob pressão, consigo sempre escrever um artigo. Mas desta vez… estou bloqueada. Uma linha vertical pisca incessantemente no ecrã onde parei a última frase. Sempre achei fácil escrever sobre culinária. Descrever os aromas, os sabores, as sensações de um estaladiço voul-au-vent de legumes ou do aveludado bolo de chocolate. Este fim de semana enchi o carrinho de supermercado e fiz experiências culinárias em casa. Fiz todas as refeições fora, em bons restaurantes. Pesquisei novos lugares e novas receitas. E nem uma linha até agora. Ainda tenho uma semana, mas é estranho não conseguir escrever nada.
E, no entanto, sinto uma vontade imensa de escrever, escrever, sem parar. Mas não sobre trabalho. Não sobre o novo restaurante de fusão ou sobre o sabor da sugestão do chef. Ontem ao final da tarde comprei um caderno em branco, com uma capa muito bonita, para servir de diário. Continua pousado em cima da chaise-longue, talvez para absorver a energia do sítio onde me estendo, com o sol a bater na cara, para escrever e pensar e chorar e estar comigo. E tem uma pose de provocação, como que a dizer para lhe pegar e começar a falar com ele.
Sinto o impulso de tocar naquele caríssimo caderno de capa dura e folhas vertiginosamente lisas e brancas. Estendo-me na minha chaise-longe, azul petróleo, e, com o caderno no colo, deixo-me afundar.
Quando abri os olhos, a primeira coisa que vi foi uma lua enorme e perfeita. Acordei cheia de frio e absolutamente desprovida de qualquer sentimento concreto. Percebo que nem jantei, mas pouco me preocupo com isso. Arrasto-me pela casa a fechar janelas e apagar luzes, dispo-me e meto-me na cama disposta a conciliar o sono interrompido pelo frio despertar. Mas o sono desapareceu. Dou voltas na cama, viro-me, rebolo, mas não encontro conforto de maneira nenhuma.
Então recorro ao velho truque de me virar de barriga para cima e ficar a pensar que não tenho sono e que posso passar toda a noite sem dormir. Normalmente resulta e adormeço ao fim de alguns minutos. Mas não esta noite. Alguma coisa me angustia profundamente e não consigo perceber o quê. Alguma coisa que me falta, ou que perdi.

Sempre a Mudança!

Mudei o título.
Agridoce fica para depois.
O título é aquilo que é mas não se vê.
A seu tempo...

Queres mais?

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Agridoce


Está para breve, para muito breve.
O próximo conto.

Re-encontrei


Ao fim de semanas.
Finalmente.
Senti o cheiro das castanhas assadas e a inspiração voltou.
E já percebi porquê.
Obrigada Mudança!

Numa floresta

Vou vingar-me.
Talvez.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Depois


Sem antes.
Sem depois.
Sem saber.
Sem dúvidas.
Sem dúvida.
Até.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Princesa Mimi



Princesa desse mundo só teu.
Agarraste a morte de frente e venceste.
Vi-te hoje de manhã.
Reconheci-te pelo balançar dos teus pequenos pés e pelo oscilar do teu frágil corpo contra a cadeirinha.
Levantaste a mão num gesto familiar, que tão bem conheci um dia.
Se fechar os olhos consigo sentir esse aroma que aspirava da tua nuca, entre o perfume, o teu cheiro e o dos medicamentos.
Era feliz nos instantes em que fazias o gesto que quer dizer “gosto de ti” e me apertavas com força no melhor abraço do mundo.
Das poucas palavras que dizias, tive a honra de ser o meu nome uma delas.
Vi-te crescer, lutar, vencer, rir, chorar. Ainda sei de cor a tua alegria, os teus medos, a tua rara angústia, o terror da noite, a calmaria da manhã, a tua inexplicável felicidade, o teu gostar.
Que dragões combates tu, à noite, quando acordas a chorar? Perguntei-me dezenas de vezes enquanto olhava para ti e sentia o teu respirar intranquilo.
Que coragem, ser pequenino, tens.
Tive vontade de sair do carro, gritar o teu nome, dar-te um xi-coração enorme e sentir mais uma vez o quanto me transformaste um dia.
Será que lembrarias de mim? Será que acordarias de novo a chamar por mim e a chorar cantando… “olha a bola, manel, olha a bola, manel…”. Fui embora. Fugi.
Tenho tantas saudades tuas.

É como devia ser?

See the animal in his cage that you built
Are you sure what side you're on?
Better not look him too closely in the eye
Are you sure what side of the glass you are on?
See the safety of the life you have built
Everything where it belongs
Feel the hollowness inside of your heart
And it's all
Right where it belongs
What if everything around you
Isn't quite as it seems?
What if all the world you think you know
Is an elaborate dream?
And if you look at your reflection
Is it all you want it to be?
What if you could look right through the cracks?
Would you find yourself
Find yourself afraid to see?
What if all the world's inside of your head
Just creations of your own?
Your devils and your gods
All the living and the dead
And you're really all alone?
You can live in this illusion
You can choose to believe
You keep looking but you can't find the woods
While you're hiding in the trees
What if everything around you
Isn't quite as it seems?
What if all the world you used to know
Is an elaborate dream?
And if you look at your reflection
Is it all you want it to be?
What if you could look right through the cracks
Would you find yourself
Find yourself afraid to see?
(Right where it belongs - NIN)

Sexta feira, eu


Calra tudo o que está à volta.
Para poder ouvir-me.
Obrigada "pagador de sonhos".

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Vingança

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segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Bung, bung, bung, bung


Mr. Sandman, bring me a dream (bung, bung, bung, bung)
Make him the cutest that I've ever seen (bung, bung, bung, bung)
Give him two lips like roses and clover (bung, bung, bung, bung)
Then tell him that his lonesome nights are over.
Sandman, I'm so alone
Don't have nobody to call my own
Please turn on your magic beam
Mr. Sandman, bring me a dream.
Mr. Sandman, bring me a dream
Make him the cutest that I've ever seen
Give him the word that I'm not a rover
Then tell him that his lonesome nights are over.
Sandman, I'm so alone
Don't have nobody to call my own
Please turn on your magic beam
Mr. Sandman, bring me a dream.
Mr. Sandman bring us a dream
Give him a pair of eyes with a “come-hither” gleam
Give him a lonely heart like Pagliacci
And lots of wavy hair like Liberace
Mr Sandman, someone to hold (someone to hold)
Would be so peachy before we're too old
So please turn on your magic beam
Mr Sandman, bring us, please, please, please
Mr Sandman, bring us a dream.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Feliz Aniversário Pata Pardaleca!



Porque hoje é um dia especial para comemorar. E porque sempre que oiço esta música me lembro das pessoas que quero ter sempre comigo. Porque é preciso celebrar cada dia em que elas nos presenteiam com a sua amizade, alegria, carinho, cumplicidade, estima, preocupação, sorrisos, confissões, e todas as outras coisas que fazemos que te tornam tão única e especial. Minha querida gema preciosa. O sorriso contagiante em que penso se alguma coisa corre mal.



Esta é só uma noite para partilhar
qualquer coisa que ainda podemos guardar cá dentro
um lugar a salvo
Parou de correr
Quando nada bate certo
E se fica a céu aberto
Sem saber o que fazer

Esta é uma noite para comemorar
Qualquer coisa que ainda podemos salvar do tempo
um lugar para nós
onde demorar
Quando nada faz sentido
E se fica mais perdido
e se anseia pelo abraço de um amigo

Esta é só uma noite para me vingar
do que a vida foi fazendo sem nos avisar
foi-se acumulando em fotografias
em distâncias e saudades
Numa dor que nunca acaba
e faz transbordar os dias

Esta é uma noite para me lembrar
Que há qualquer coisa infinita como um firmamento
Um sorriso, um abraço
Que transcende o tempo
e ter medo como dantes
de acordar a meio da noite
a precisar de um regaço

Esta é só uma noite para partilhar
Qualquer coisa que ainda podemos guardar cá dentro
Um lugar a salvo
Parou de correr
Quando nada bate certo
E se fica a céu aberto
Sem saber o que fazer

Esta é uma noite para comemorar
Qualquer coisa que ainda podemos salvar do tempo
Um lugar para nós
Onde demorar
Quando nada faz sentido
E se fica mais perdido
e se anseia pelo abraço de um amigo

(Mafalda Veiga)



Ratazana, que já me fizeste chorar hoje!

sábado, 13 de outubro de 2007

om mani padme hum


Ganhei.

Aparição


Ave Maria

Gratia plena

Dominus tecum.

Benedicta tu in mulieribus

et benedictus fructus

ventris tui, Jesus.

Sancta Maria

Mater Dei,

ora pro nobis, peccatoribus,

nunc et in hora

mortis nostræ.

Amen.




sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Expiação



Porque as cotas de malha e os escudos de aço apenas nos protegem de investidas físicas.
Porque as espadas e baionetas ferem apenas carne.
Porque o conflito armado apenas esconde medos e inseguranças.
Porque as armas apenas nos despedaçam os membros e provocam agonias corporais.
Despida.
Segura.
Nua.
Desarmada.
Destituída.
Serena.
Despojada.
Com farrapos de nuvem nos cabelos.
Livre.
Vitoriosa.

Vais morrer.

Amanhã.

Nódoas


O nevoeiro purificador.
Entrar com sedas e damascos pútridos de humanidade. Correr por entra a neblina, sem rumo, sem rasto, sem nome, sem cor, sem som. Cheia de nódoas.
Para sair do outro lado, nua e limpa.
Agora sim, sem nódoas.
Porque no melhor pano caem todas as nódoas. Porque é no branco imaculado e puro que toda o descuido e podridão se manifestam.
E na simplicidade da chita, que não nos esforçamos para salvaguardar de nódoas, mesmo as que caem são laváveis.
A organza transforma-se em farrapo ao primeiro salpico.
Prefiro a chita. Prefiro as nódoas. São honestas.
Estou.
Despida.
E sem nódoas.
Ainda com farrapos de nuvem que se desprendem dos meus cabelos.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Alcácer-Quibir




Eles não morreram.
Fugiram de medo. E atrevem-se a sair como heróis!
E depois assombram-nos para se certificarem que ainda acreditamos neles.
Que fado, que sina...

Laurinda, 1408?



E vais pagar por esta!

Eu quero




“Eu quero. Eu sou capaz de lançar um grito para dentro de mim, que arranca árvores pelas raízes, que explode veias em todos os corpos, que trespassa o mundo. Eu sou capaz de correr através desse grito, à sua velocidade, contra tudo o que se lança para deter-me, contra tudo o que se levanta no meu caminho, contra mim próprio.
Eu quero.”

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Para a Inês



Como pediste!

Numa taça misturas 6 gemas com 2 colheres (sopa) de farinha e uma chávena de açucar. Pões ao lume um pacote de natas com 2 tabletes de chocolate da culinária. Misturas o chocolate derretido com as gemas. Bates em castelo as 6 claras e juntas ao preparado. E depois é só por no forno, mas não perguntes quanto tempo...
Eu gosto que ele não fique completamente cozido, para ficar com aquela textura de sábado, em espuma. E é óptimo se puseres chatilly polvilhado com chocolate por cima de uma grande fatia!

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

As palavras dos outros em Nós

Chamamento. Vocação.
Centro. Entrega. Compreensão.
Respeito. Liberdade. Asas.
Meu amigo, não há vício que te ultrapasse. Não há dor que não superes de peito e mãos abertos. Não há medo que te vença. Não há desejo que te corrompa. Não há fúteis sentidos em ti. Não há terra que te prenda. Não há vento que não te tenha como seu. És ar em ti, nos outros, onde for.
A materialidade quebra-se. Separas o sal da água em lágrimas de conforto e de liberdade. Sopras e a lágrima deixa de ter um sentido. És ser. És estar. És amar. És mudar. E voar. E ar. Em ti voam os dois.
Na religião, és cálice, graal, pão. Em qualquer que seja o credo, cultiva-se o Amor, na mais profunda acepção da palavra. E o Amor é tolerância. É expiação com destino a uma elevação. É liberdade. E verdade. É centro, chakra, elemento. É caminho. Individual. Espiritual. É união.
De mãos dadas te vejo. De mãos dadas te saberei um dia...

terça-feira, 4 de setembro de 2007

A Balança, o Equilíbrio

Trazes contigo a Mudança, sempre a mudança. Mas sem juízos de valor. Nem os meus comigo toleras.
Disseste-me uma vez que gostavas de ser mais atenta com os teus amigos, como eu, que ligo sempre, para saber só como estás ou dizer que tenho saudades tuas.
Pois eu não vejo melhor amizade que a que tu dás. Sem cobrança, sem porquês, sem juízos de valor. Tens sempre uma palavra de conforto. E mesmo quando eu me recuso a falar, tu sabes. Tu sabes, não sabes?
Ia aquecer um qualquer tupperware e jantar na companhia do arrogante House. Mas tu sabes. E por isso, com uma desculpa inocente e um convite para jantar, tiraste-me do buraco, da minha toca escura e fria. E foi o que foi. Simples. Uma massa excelente que ainda me está a dar sede. Duas garrafas de tinto (para a próxima, quero a famosa Periquita e o Conventual!!). Três amigos. Conversas banais. Fotos banais. Nada de mais. E foi tão importante como ser pura e simplesmente três amigos a fazer planos.
Adoro a simplicidade como dizes que vai ficar tudo bem, que já foi pior e que sou lutadora. Ainda não é desta que vou abaixo. Não enquanto estiveres aí. Nunca, enquanto as simples jantaradas a meio da semana forem alento para nós.
Obrigada, Pata. Hoje e sempre. Por estares, simplesmente, desse lado. E por me fazeres sentir que o vento da Mudança será sempre positivo. Adoro-te! Tinha saudades tuas. E sim, estás mais elegante. :)
Quanto a ti, Mana, exemplo. Porque também sem cobranças me dás na cabeça e avisas. Sempre para meu bem. Até hoje, tudo o que me disseste estava certo. Nunca duvidei. Mas eu tinha de ir ver. Nunca mais vou ter essa curiosidade toda. Se o dizes, vou ter muito mais cuidado.
Também sem juízos de valor, olhas e com esse olhar sereno sereno pensas: "Não faças asneira, miúda...". E essa protecção é muito importante para mim. Ainda me faltam uns anos. Daqui a dez, quero ter esse olhar. Que mesmo em aflição é tranquilo e serena quem está à tua volta. E sempre que o alento não chegar e o dia custar a passar, pelo menos a Mana está ali mesmo ao lado. Obrigada.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Cinzento e branco

Na mais absoluta solidão de mim, caminho. Enterro os pés na areia sólida e molhada. Sinto a água nos tornozelos, gelada, e caminho por entre o nevoeiro. Penso que daria uma bela fotografia. Eu, sozinha, toda vestida de branco a caminhar através da neblina. Entre o mar e o vasto areal, cheio de gente a preparar-se para ir embora. A falta de sol afasta-os. Melhor para mim.
O mar está estranhamente calmo. Ao fundo, seis pontos pretos a boiar. Surfistas. Também não é o dia deles. Hoje a praia revoltou-se e mandou toda a gente embora.
As gotículas de nevoeiro entranham-se na minha pele, frias. E sopra, vinda do mar, uma leve brisa gélida que contrasta com o calor que emana a areia. Sinto-me aconchegada e embalada pelo som da rebentação.
Enquanto o sol não chega, é o dia de praia mais perfeito de sempre.
As roupas e toalhas coloridas contrastam com a solenidade do dia. Queria que todos eles se fossem embora. Queria que se fizesse silêncio. Que o sol não viesse.
Estou em reclusão dentro de mim mesma. Voto de silêncio.
Faço parte da areia onde me deito e sinto cada grão tocar no meu corpo. O vento acaricia-me as costas e eu espero que ele me leve consigo.
Inspiro e aspiro os aromas à minha volta. O cheiro dos protectores solares. A espuma das ondas. O sal da areia. A parafina das pranchas de surf. A lona das barracas listadas, azuis e brancas. O fumo do cigarro.
E os sons. O "tok-tok" das raquetas. O folhear dos livros. Os sacos de plástico. Risos agudos e choros fingidos de crianças. As pequenas e perfeitas ondas a rebentar. Conversas de como o tempo está mau para fazer praia.
Para mim nunca esteve tão perfeito.
Vão-se embora! Façam silêncio.
Quero branco e cinza e azul e areia. E brisa e espuma. E silêncio de mar, silêncio de mim.

(escrito em 2/9/2007)

Até cair

No sábado à noite estive a falar com o meu amigo pagador de sonhos. Que recentemente viu os seus um pouco abalados. Ali estávamos os dois, em frente ao computador, cada um com o seu copo, cada um com a sua música. Os dois a exorcisar fantasmas. E ali estávamos os dois, a precisar de matar.
Meu amigo, não me peças para te ajudar. Não sou a pessoa indicada. Espero sinceramente que encontres o teu caminho. Que não te desvies dele, seja lá qual for a decisão de terceiros. Faz o que tens de fazer.
Ficou combinada uma sessão de cervejas até cair para o lado. Se algum de nós se lembrar.

Sinto o cheiro de sangue no ar. Vou matar em breve. Pelo simples prazer de abocanhar uma vítima pelo pescoço e sacudi-la até sentir os osso estalar. Meter-lhe as patas em cima e rasgar-lhe a pele. Sugar-lhe o sangue pela jugular. E depois, fria e impávida, abandonar a vítima. Que fique estendida no chão, com os sinais visíveis de um assissinato brutal. Serena e com marcas de garras e sangue, viro as costas. Matar pelo simples prazer. Vou fazer uma vítima. E está para breve. E vai ser até cair para o lado.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Vitoriosa

Quero sua risada mais gostosa
Esse seu jeito de achar
Que a vida pode ser maravilhosa
Quero sua alegria escandalosa
Vitoriosa por não ter
Vergonha de aprender como se goza

Quero toda a sua boca castidade
Quero toda a sua louca liberdade
Quero toda essa vontade
De passar nos meus limites
E ir além, e ir além

Quero sua risada mais gostosa
Esse seu jeito de achar
Que a vida pode ser maravilhosa
Que a vida pode ser maravilhosa

(Ivan Lins/Victor Martins)

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Descobri


Já sei o que era. O que queria escapar de mim a toda a força. O que não me deixa ser outra coisa que não eu.
Descobri. E descobri-me.
Já sei o que me faz querer mais. Nunca parar. Nunca poisar. O que me faz partir, uma e outra vez. Sem olhar para trás. Deixando tudo, até ao último pano.
Tudo à minha volta muda. Tudo em mim está a mudar. Hoje compreendo. E aceito. Nem eu queria outra coisa.
Os meus sentidos embriagam-me agora, qual autista sobre-estimulado. Em silêncio contemplo-me e vejo. E compreendo.
Sinto-me imortal. Capaz de tudo. Há em mim uma força sem nome. Que se renova de cada vez que inspiro. E que sinto capaz de mostrar com um sopro.
Agora sim. Estendo as asas e voo. Vou.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Nova morada

Porque precisei de mudar.
Porque há um nomadismo intrínseco em mim.
Algo que me faz sair do sítio onde estou para ter mais, ver mais, sentir mais. E sobretudo ter, ver e sentir outro lado. Os outros lados. Resolvi publicar nesta nova localização alguns dos textos antigos. Não é hábito meu trazer coisas de outras paragens. Deixo sempre tudo para trás. Mas velhos hábitos também se mudam. E esta minha forma muito própria de comunicação comigo e com os outros só faz sentido com essa bagagem.
Eu mudei. Todos os dias a minha metamorfose se manifesta. Alguma coisa cresce de mim.
Ao cair do pano, serão asas? Começou com uma história. Agora define-me. Porque ao cair do pano, tudo é cru, nu, verdadeiro.
Bem-vindos, os que vêem por bem, a este novo casulo.

Asas quebradas



Dizia-me um destes dias, em tom de suspiro, um colega de formação: “O que um gajo tem de fazer para pagar sonhos!”. Isto porque para pagar um sonho, trabalha actualmente numa loja de decoração, que não é de todo a sua área. Ora o meu amigo até tem razão. Mas só me fez ver o quanto tenho as asas presas. Porque se uns trabalham para pagar sonhos, outras há cujo ordenado apenas paga contas. E os sonhos? Onde ficam? Aí está a explicação para a minha constante sensação de vazio. Depois das contas pagas, não sobra o suficiente para os sonhos.Devia voar, eu. Mas cortaram-me as asas. Se as estendo, cortam-me outras coisas. E recebo uma ordem de despejo, na melhor das hipóteses. Apetece-me gritar. E não posso. A minha rebeldia é pintar uma asas permanentemente, para ter a doce ilusão de que as tenho para sempre.

Perguntas indiscretas



De que(m) foges, afinal?


Mesmo que tente, nunca posso fugir. Porque quando eu já tinha uma resposta elaborada na minha mente que explicava tudo, a vida diz-me que eu estava errada. E aparecem pessoas como tu, que não fazem mais do que falar de si, e revelam quem somos nós.Cada vez mais acredito que as pessoas aparecem na vida das outras por uma razão bastante válida. Ou porque precisam de ser ajudadas nalgum sentido. Ou porque nos vêem ensinar qualquer coisa. Ou simplesmente põem a nossa vida em perspectiva. É a primeira vez que escrevo para alguém que conheço mal. Mas a verdade é que este alguém tirou de dentro mim coisas que eu tenho por resolver e sobre as quais é difícil falar. E isto de falar com alguém é muito complicado. Sempre foi mais fácil escrever, por mais que a pessoa esteja próxima. Para ti, dizes, não é fácil escrever. Afinal não tinhas razão. Há um rosto, uma voz, uma presença diária. Há uma cumplicidade escondida, porque não pode ser de outra forma. Mas não há voz. Porque nenhuma voz consegue exprimir determinadas dores.Ter a capacidade de apontar onde dói e reconhecer essa dor é uma aprendizagem muito importante. É fácil fazer isso aos outros. E confrontarmo-nos com isso? Saber onde dói e porquê. Compreender. Aceitar. Perdoar.


Achei que nunca mais ia olhar para as pessoas com deslumbramento. Porque achava as pessoas imperfeitas e capazes de fazer mal aos outros. E eu? Quanta vezes feri e magoei e fiz mal? Achei que nunca mais ia gostar das pessoas até perceber de que o que eu gosto é das imperfeições. Das coisas que nos tornam humanos. Compreender quem sou, as decisões que tomei, as vezes que matei. Compreender porque se mata e se faz mal e se é imperfeito aos olhos de alguém. Aceitar essa imperfeição em mim e nos que confessam a imperfeição. Perdoar os outros. Perdoar-me a mim.Entre matar e morrer o que escolhemos em determinadas circunstâncias? Quem pode dizer se isso é bom ou mau? Numa situação extrema quem somos nós? Matamos ou morremos?


Nunca somos totalmente bons. Nem totalmente maus. Somos humanos. E o que nos aproxima do divino é precisamente essa condição humana. De compreender o bem e o mal. Que infligimos aos outros e a nós próprios. Para sermos divinos basta-nos compreender, aceitar e perdoar. Aos outros. Mas sobretudo a nós.


De que(m) foges, afinal? Sim, tu, criatura!

Sensibilidade e Bom Senso



Ele - Estás tão bonita hoje!


Ela - Bebeste?


Ele - E és tão bruta também!


(Escrito em 8/8/2007)

Ao Cair do Pano - Agradecimentos

Obrigada!
Foi uma honra ter os vossos comentários, sugestões, críticas e força. Quero deixar para todas as pessoas que contribuíram para Ao Cair do Pano. Se me esquecer de alguém, perdoem. Para os que lerem e não fizerem parte do clube oficial de críticos habituais (se é que alguém tem paciência…) um muitíssimo obrigada por terem cruzado o meu caminho, mesmo que eu não o saiba. Para os que estão retratados, bem, estão sempre retratados e não reclamem mais protagonismo!!!São a minha vida. Para os que não estão retratados, são a minha vida também. E cada um à sua maneira muito especial está no conto com a sua força e amizade.

Mãe – para ti poucas palavras, porque nunca vou poder verbalizar isto tudo que tenho cá dentro. A mais simples de que me lembro, obrigada! Ao cair do pano, tapas-me sempre para nunca ter frio.

Pai – também para ti é difícil escrever qualquer coisa. Por isso, obrigada. Sou muito tu e isso é o que me orgulha em mim mesma! Ao cair do pano, finalmente nos vejo.

Mano – tens o teu texto…não chega para dizer tudo aquilo que nós sabemos. Obrigada! Estás sempre comigo. Ao cair do pano, e ao desligar das luzes, só nós é que sabemos.

Mariana – És da família. Que mais te posso eu dizer? Obrigada! Ao cair do pano, escrevi para ti!

Migu – Por me fazeres sentir que ao acompanhares a história te sentias bem. Pelas críticas consistentes e encorajadoras. É muito bom sentir que escrevi também para ti! Ao cair do pano, lá estás com a tua influência.

Pedro – companheiro de crescimento. De casa e de vida. Amigo incondicional. Ouvinte atento. Do bom e do mau. Conselheiro. Obrigada. Ao cair do pano, afinal choramos os dois.

Lubic – o único que escolheu a sua participação, o seu nome, o seu papel. Enfermeiro do chocolate, amargo ou doce. Recente amizade, já tão grande e importante. Obrigada! Ao cair do pano, as nódoas de chocolate são inevitáveis.

Pow-Wow – o outro lado de mim. Pelas merendas. Pelas tempestades. Pelas manhãs. Pela paz e intrínseca serenidade que trazes ao mundo. Pela música que trouxeste de novo à minha vida. Por todas as alegrias que ofereceste. Pela frescura de sentimentos e emoções. Por todas as vezes em que tenho o privilégio de te ver simplesmente sorrir. Simplesmente ver-te sorrir. Pelo novo projecto. Pelo Pow-Wow. Pela festa que fazemos juntos. Pela admiração que despertaste em mim. Por uma amizade linda. Obrigada! Ao cair do pano, Pow-Wow!

DEEP – pela música. Pela força. Pela inspiração. Muito foi escrito ao vosso som. Sou fã desde aquele mágico fim de tarde em que o meu destino se cruzou com os vossos refrescantes acordes. Por todas as vezes que tenho o prazer de vos ouvir e por todas as vezes que vos tenho no carro, aos altos berros, pelas ruas de Lisboa e pelos meandros da minha alegria! Obrigada. Ao cair do pano, música!

Miguel Girassol – por me mostrar um projecto. Fiquei fã e publicito! Uma esperança. Pela crítica. Obrigada. Ao cair do pano, poesia!

Alada – a melhor crítica. Por tocar e ser tocada. O agradecimento mais bonito: Amiga! Obrigada. Ao cair do pano, porque tinha de acontecer.

Rodrigo – pelos disparates que tens a capacidade de dizer! Obrigada. Ao cair do pano, reencontro.

Fantasma dos olhos azuis e dos coktails – pela preocupação. Pelos cocktails. Pela leveza que és tu. Obrigada. Ao cair do pano, cúmplice silêncio e mais um shot.

Antropólogo L – por acompanhares. Pelas críticas. Pelos conselhos. Para o ano, lá nos vemos na pós-graduação comum. Obrigada. Ao cair do pano, sabes de tudo e não dizes nada.

Rómulo – não tens personagem porque o estatuto de uma década de papéis (principais ou secundários) te permite escolher um nome que pode vir a não ser usado. Mas está lá. Sem dúvida. Pela amizade, longa e profunda. Pelos segredos. Pelas revelações. Pelo que inspiraste. Por dez anos. Obrigada! Ao cair do pano, de nós só nós é que sabemos.

Salvador – por seres o distante ordinário que despertou o pior e o melhor de mim. O pior de sempre. O melhor? Poder escrever e tirar de dentro o pior que trouxeste. Pelas mentiras e enganos que tanto me ensinaram. Obrigada. Ao cair do pano, eu cresci e tu não vales nada.

Duarte – ao cair do pano, foi tarde demais.

Ao Cair do Pano

I – Ele passou

Ele passou sem dizer nada. Apenas um olhar... Passou por mim e eu estremeci com apenas um olhar longo e profundo. Só um olhar... De disfarçada indiferença. De quê mais?
- Mariana, vamos ao bar? Estou morta de fome! – digo eu para a minha amiga.
- Vamos. Mas o que é tu tens? Estás cá com uma cara...
- Nada, nada! Anda, mexe esse rabo.
Nada. O que lhe ia dizer? Nada. Não havia nada para dizer. E mesmo assim, aquele olhar cravado nos olhos...Atrevido! Olha mesmo nos olhos! Sem medo. Sem pudor.
Àquela hora o bar está cheio de gente, que aproveita o intervalo para jantar, ou simplesmente tomar um café, para aguentar as aulas ao fim de um dia de trabalho.
Olho para o lado à procura do resto da turma, para saber se guardaram uma mesa para nós. Mas encontrei outro alguém. É ele. Está ali. E a olhar para mim outra vez! Que descarado! Desvio o olhar, mas sinto-o pregado à nuca.
- Susana! O que foi? Estás a pensar em quê? Mas que cara! – pergunta-me a minha amiga.
- Mariana, está um homem a olhar para mim!
- Pudera! Há muitos homens que olham para ti, tola!
- Não estás a perceber! Está a olhar para mim fixamente. Detesto que me façam isto.
- Detestas? Susana, tu olhas assim para as pessoas! Mas quem é? É giro? Onde é que ele está?
- Ás minhas duas horas, de pé, a comer uma tosta. Aquele de camisa aos quadrados e jeans.
- Uau! Que borracho! Agora deixa lá o homem e vamos, que a aula está a começar!
E assim, fomos para mais uma aula.
Eu e a Mariana conhecemo-nos o ano passado, num desses trabalhos de hospedeiras que fazíamos durante a faculdade. Quando as aulas começaram, lá estava ela dentro da sala. Ficamos espantadíssimas de nos reencontrar-mos, e ainda por cima, no mesmo mestrado. Foi amizade à primeira vista pela segunda vez! Desde esse dia somos inseparáveis. Nós e a Migu. Tratamo-la por Migu, para abreviar o interminável nome da Maria de Guadalupe.
E ele continua a olhar. Mas que raio! Já me olharam muitas vezes, mas com esta lata... Quem será? Nunca o tinha visto cá. Um corpinho de bailarino destes não passa despercebido! É mesmo giro! E não pára de olhar para mim. Para mim!
Episódio esquecido. Por agora.
No fim das aulas saímos todas juntas como de costume, para ir comer uns hambúrgueres e por a conversa ainda mais em dia. O Gonçalo veio, como de costume, buscar a Migu, e finalmente chegamos ao parque de estacionamento.
- Mariana, vens atrás de mim?
- Como sempre Suse! Até já!
Todas as semanas é o mesmo ritual. Depois da calórica ceia, cada uma dirige-se a sua casa.
Quem me dera não ir já para casa. Já não aguento viver ali! Aluguei a casa ao Salvador, numa altura em que achava que ainda salvava alguma coisa...
Mas os caminhos desencontraram-se, graças à fraqueza dele, à minha falta de fibra, e claro, como não poderia deixar de ser, a uma ordinária qualquer que apareceu para destruir o que em tempos foi bom. Uma reles meretriz que conseguiu destruir um sonho. Ia ser em breve, o casamento. Caiu o pano e os sonhos desfizeram-se. A alegria acabou. O espectáculo acabou. Apagam-se as luzes, e no fim restam apenas os discos de algodão com restos de maquilhagem. De cara lavada, percebo que afinal não era tudo tão glamoroso assim.
O Brian Adams distrai-me no caminho para casa. Tenho sempre 80's no carro! Que oiço aos berros, vezes e vezes sem conta. Gosto de conduzir. Ao som da música, que me descontrai. Já fui, por mais do que uma vez, apanhada a cantar no trânsito. Sempre com o rádio aos berros. Sempre os eternos 80’s! Passo pelas lombas da avenida a uma velocidade estonteante, apesar de não ter pressa para chegar ao destino.
E eis que chego a casa. Esta casa deixa-me triste. Tenho que sair daqui! Mais uma mudança e uma página virada na vida.

II - Desalinho

Quinta-feira. Hoje é dia de aulas. Chego mais cedo à faculdade para beber um sumo de laranja. Abro o portátil, ponho os head-phones e fico a trabalhar com aquela fantástica luz do bar ao fim da tarde. Alguns minutos mais tarde vejo chegar o Pedro. Lá se vai o trabalho. Desligo tudo e começa a conversa habitual. Já conheço o Pedro há muitos anos, desde o liceu, altura em que fomos da mesma turma.
- Como estás Susana? Tudo bem? Já arranjaste um tipo para dar umas voltas ou ainda andas armada em viúva?
- Olá Pedro! Mas que subtil. Não, ainda não tenho um namorado novo...Mas já fiz algumas mudanças.
- Estou a ver. Essa cor de cabelo fica-te bem. E também não é preciso arranjares um namorado, ó parvinha. Basta um qualquer para te divertires um bocado e desenferrujar! Gosto da tua roupa nova. Estás toda gira! Eu também queria fazer algumas mudanças...Tenho de sair da casa onde estou. Está a cair aos bocados e eu estou farto!
- Eu também estou a ver se arranjo casa. Quero deixar a casa do Salvador o mais rápido possível!
- Olha, o que era giro era irmos morar juntos! O que dizes? Dividimos a renda e as contas. Vai ser o máximo, o que dizes?
- Olha, porque não? Tenho aqui o jornal se quiseres ver. É tudo caríssimo. Se for para dois, de facto é mais barato. Mas não achas estranho?
- Estranho porquê? Somos amigos há anos. E depois, que mal é que tu achas que eu te podia fazer?
- Nenhum, nenhum, Pedro. Desculpa. Só nunca pensado nisso. Podemos começar à procura então.
- Claro! Vai ser o máximo!
E assim decidi que ia viver com o Pedro. Caiu do céu hoje aquele rapaz! Finalmente encontrei a solução para sair daquela casa. Começo amanhã mesmo à procura de um apartamento!
Levanto-me, agora mais animada com a perspectiva da mudança e vou para a aula. Chego à porta da sala, onde já estão alguns colegas, e encosto-me à parede a fumar um cigarro, enquanto espero pelo professor. A Mariana está atrasada, tal como a Migu, e eu deixo-me ficar por ali na conversa com alguns colegas.
De repente, ele passa! Até fiquei sem fôlego! Lá está ele com o mesmo olhar de... nem sei. Desafio?
Sinto-me nua com um estúpido cigarro na mão, e a corar violentamente. Desvio a cara, com um olhar arrogante, como se não houvesse nada mais repugnante do que aquele olhar. Mas o meu segundo olhar trai-me. Seis segundos e eu esqueço-me do mundo. O professor passa por mim e eu nem dou por isso. Seis segundos.
Mas que parvoíce! De onde é que saiu o raio do homem? Não ouvi o elevador. Deve ter vindo pelas escadas. Talvez tenha aulas no andar de cima. Deve andar aqui num mestrado ou pós-graduação qualquer. Deve ser um dos “engomadinhos” de Gestão. Mas não tem ar de gestor ou informático. Até tem um certo desalinho que me agrada... Talvez seja aquela combinação entre “arrumadinho” de Dockers e camisa branca, e James Dean, com um blusão de jeans e uns ténis de montanha nos pés. O cabelo é preto, com uns laivos de cinza, que lhe dão um charme inacreditável! Moreno...
Seis segundos e eu descrevo-o como se tivesse passado o dia a olhar para ele. E como se a porcaria do cigarro não me estivesse a queimar os dedos!
Será que ele vai passar por aqui outra vez? Quem será ele?
Lá estou eu com parvoíces na cabeça! Quem será? Sei lá! Um parvo qualquer com ar presunçoso que me olha de alto a baixo porque é assim que deve olhar para as mulheres todas! Que estupidez!
E mesmo assim, a memória dos olhos dele tarda a abandonar o meu pensamento. Isto, claro, até chegarem as outras duas e trocarmos bilhetes no meio da aula sobre as novidades!
Episódio esquecido. Por agora.
No domingo eu, a Mariana e a Migu vamos lá para casa de novo, fazer mais um trabalho de grupo. Talvez o último que fazemos naquela casa. Hoje vou já começar a arrumar algumas coisas. Pode ser que encontre uma casa depressa. Para mim e para o Pedro. A ideia de ir morar com o meu amigo começa a fazer cada vez mais sentido, e eu sinto-me animada com a proposta. As coisas vão começar a mudar. E o desalinho da minha vida vai começar a resolver-se. Sinto-o!

III – Fitas e Confetti

Encontrei uma casa. Fui vê-la hoje com o Pedro e fechámos negócio com o senhorio, que, por alguma razão achou que somos casados. Já tenho a chave. Saio de casa com um caixote de livros na mão. Ligo o carro e o rádio. A casa nova não é longe daqui. Em cinco minutos estou à porta, com um caixote nas mãos, e uma sensação de positivismo e bem estar. Subo ao primeiro andar, pouso o caixote e abro a porta. Esta é a minha nova casa. A minha vida vai mudar aqui. Ligo o quadro e improviso um cinzeiro. Percorro as divisões, abro janelas, planeio espaços. Depois do cigarro à janela das traseiras, olho para o jardim e resolvo que é hoje que arrumo tudo.
Depois de comprar caixas de cartão no hipermercado, começo a separá-las por divisão e a encaixotar as centenas de livros. Hoje uma divisão tem de ficar pronta. Para ir embora. Durante três frenéticos dias arrumo em caixotes de cartão toda a minha vida. Enquanto separo livros e roupas para os colocar em diferentes caixas, reflicto. E separo pensamentos e memórias. Para também eles serem postos em diferentes compartimentos. As mudanças sempre me ajudaram a pensar. A ser diferente. A ser anfíbia, resistente. Adapto-me bem. É só mais uma mudança. A maior até hoje.
Quinta-feira. É hoje. Rebato os bancos do carro e passo o dia de uma casa para a outra, a transportar caixas, caixinhas, sacos, embrulhos, cabides. Tudo. Hoje. Chego à casa antiga e tiro as últimas coisas. Ponho o lixo no contentor. Deixo o lixo sentimental. Numa caixa branca com letras azuis. Lá deixei 3 anos. Três anos. E um caderno azul. O diário corrompido. Junto a ele estão três anos: bilhetes de cinema, tickets de portagens, recibos de hotéis e restaurantes, programas de concertos, fotografias, cartas, desenhos, um velho porta-chaves. E uma fita cor de rosa. Uma fita da minha benção... Não queria que aquela fita tivesse sido benzida pelo Cardeal, nesse dia tão feliz e tão triste. Fica a caixa. Com sonhos, risos, alegrias, promessas, juras de amor eterno, sacramentos por cumprir, músicas de embalar, partilhas, confetti de um Carnaval de três anos. No fim, fico só, qual palhaço rico e triste, com uma lágrima pintada no rosto e o coração de mimo partido. Desfeito. No fim do Carnaval, resta limpar o soalho dos restos de papel colorido e louça de plástico. Quando cai o pano, desmaquilham-se rostos e sonhos, e fica só a sujidade por limpar, numa sala abandonada com ecos de música longínquos e apagados.
Fecho a caixa. Fria. Coloco-a numa prateleira. Calma. Fecho a porta. Tranquila. Tiro a chave do porta-chaves e rodo-a duas vezes. Serena. Abro a caixa do correio e mando para lá a chave. Insensível. Ouço-a cair no chão e ecoar nas paredes despidas. Impávida. Fim. Imperturbável.

Ligo o carro e o rádio. Mudo o disco. Dirijo-me para a faculdade ao som (altíssimo) da banda sonora de um filme francês que mudou a minha vida. Hoje, a minha vida mudou. E finalmente choro. Compulsivamente. No trânsito. Choro. De desespero. De alívio. De frustação e mágoa. De revolta. De fim. De mudança. Choro.
Chego à porta da sala e olho para a Mariana e para a Migu, que vêem no meu rosto a expressão de mudança. Elas não sabiam que era hoje. Fiz tudo sozinha. Carreguei tudo sozinha.
- Consegui. Saí de casa. Hoje. Deixei aquela casa. Hoje fico na casa nova. Vim embora. Hoje. – e recomeço a chorar nos braços das minhas amigas que me envolvem com uma ternura de quem sabe o que dói.
- Calma Susana. Como é que tu estás? Precisas de alguma coisa? Queres ir ao bar comer uma sopinha? Uma água, talvez? – a Mariana sabe a importância da sopa quente em alturas de crise.
- Mas então, já arrumaste tudo? E já tens luz na casa nova? – a Migu e os pormenores técnicos... Despachada como ela só acrescenta – Fizeste o que tinhas de ter feito. Aquele anormal do Salvador é um ordinário. Estavas a dar cabo de ti. Vida nova, miúda!
Vida nova. Paro de chorar e dou conta de que mudei. Hoje. Caiu o pano. Estou despida de sentimentos. Mudei. Hoje.
Visto o meu melhor sorriso e entro na aula. Passei por ele quando cheguei. Mas vinha tão desolada que baixei os olhos e segui para o colo das minhas amigas. Ele olhou para mim. Mas acho que percebeu que eu não estava bem. Episódio esquecido. Por agora. Talvez ele vá ao bar no intervalo...

IV – A Apresentação

Três meses passaram desde a mudança para a casa nova. Já nem a chamo de casa nova. É pura e simplesmente a casa. Gosto de viver aqui.
Sexta-feira. Mais um dia de aulas. Será que o vou ver? Há meses que nos cruzamos nos corredores da faculdade e olhamos um para o outro. Sem dizer uma palavra. Só sorrimos. Meses de cumplicidade envergonhada. Nem uma palavra. Ninguém sabe. Ninguém repara. Não sei nada dele. Nem ele de mim. Digo a mim mesma que da próxima vez que o encontrar vou ganhar coragem e falar com ele. Isto nunca me aconteceu! Sou uma provocadora, e noutra situação já teria mandado um piropo qualquer. Mas nunca lhe disse nada. Coro de cada vez que ele se aproxima. Fico muda. O que é que se passa comigo?
Claro que a Mariana e a Migu já perceberam. Pelo menos a Mariana já me perguntou quem ele é. Mas eu também não sei. Estamos fartas de falar nisso. De como olhamos um para o outro e de como nenhum dos dois tem coragem de falar. Já lhe pusemos a alcunha de “Homem Mistério” e tudo. Mas ele, nada. Não lhe cai o pano. E eu estou na mesma.
Depois do regresso do bar no intervalo ficamos mais cinco minutos à porta da sala, enquanto eu fumo um cigarro. Viro-me de costas para a porta da sala e olho através das enormes janelas para o edifício da frente. E ele passa. Atravessa o meu campo de visão, com um olhar provocador e desafiante. Olha durante mais tempo agora como se isso pudesse provocar uma reacção em mim. Fixa os olhos nos meus.
Descaradamente sorrio. Despudoradamente. Olho-o de alto a baixo, como tem sido hábito dele durante as últimas semanas. E ele sorri de volta, desavergonhadamente. Sem uma palavra.
Fiquei estática como sempre. Não consegui dizer nada. Para a próxima, penso. Para a próxima é que é! Mando-lhe uma boca que lhe passam as manias num instante!
Mais um dia de aulas que acabou. A Migu não veio hoje e a Mariana foi ter com o Miguel, o ainda não assumido namorado. Nunca mais cumprimos o nosso ritual de fim de aulas. Tenho saudades. Mas gosto de ver a Mariana feliz, assim.
Amanhã falo com ele. Se ele passar por mim, é desta que não fico calada. Será que amanhã o vou ver? Já não entro na faculdade sem pensar nisto. Mas porque é que este homem mexe comigo desta maneira?
Episódio esquecido. Por agora.
A semana passa e as noites de aulas chegam de novo. Quinta-feira. Hoje tenho uma apresentação que ainda não está concluída. Vou para o bar trabalhar, na hora da primeira aula. O bar onde eu sei que ele vai. Em vez dele aparece-me o Pedro que sabe do meu desespero para acabar este trabalho. Lança-me um beijo de boa sorte e despede-se. Acabo o trabalho e vejo que está na hora do intervalo. Ligo à Mariana que me diz que a primeira aula se vai estender mais um pouco. Desço e atravesso o pátio enorme, branco. Entro no edifício novo, onde vou ter aulas e fico à porta da sala à espera. Parece que estou completamente sozinha no edifício. Não há ninguém à vista.
E eis que ele passa.
- Quer ir lanchar?
Está a falar comigo! Não posso acreditar. Faço um esforço para parecer calma e responder, mas só me sai um ar arrogante e uma resposta que eu não queria.
- Não obrigada! Vou ter uma apresentação agora.
- Está bem. Então boa sorte!
Vejo-o a descer a rampa, e num acesso de lucidez e tentativa de prolongar o diálogo, pergunto:
- Como se chama?
Ele, já no piso de baixo, diz-me o nome que eu não entendo. Mostro-lhe que não ouvi. Ele desaparece do meu campo de visão e eu começo a ouvir passos apressados na escada atrás de mim. É ele. Aqui. A 80 cm de mim.
- Duarte. Trata-me por tu.
- Está bem Duarte. Sou a Susana. Pois é, eu vou ter uma apresentação agora e estou à espera de entrar na sala.
- Eu vou lanchar que estou cheio de fome. Fica para a próxima.
- Sim, sem dúvida. Até logo.
E desaparece de novo, a correr pela escada abaixo. Do sítio onde estou vejo a porta de entrada no bar e a fila. Consigo vê-lo daqui. Nem acredito que ele falou comigo ao fim de todos estes meses. Entro na sala e pergunto quanto tempo falta. A Mariana faz-me sinal a dizer para ir beber um café e voltar às 9.
E é isso mesmo que eu vou fazer! Apareço de repente ao lado dele.
- Afinal acho que vou beber um cafézinho. A aula está atrasada. Só às 9! Em chávena fria, por favor.
Sempre tive manias com as bebidas quentes. Não gosto. Nem o café. Bebo quase frio. Quente, só o chocolate. Com chantilly.
Sentamo-nos a conversar e entendemo-nos bem. Falamos imenso sobre tudo, como se tivéssemos acumulado conversas ao longo destes meses.
Um quarto para as nove. Ficava aqui o resto da noite, mas o bar está a fechar e eu tenho uma apresentação. O Duarte acompanha-me até à sala, onde ficamos mais um pouco à conversa e eu lhe peço o e-mail.
- Boa apresentação Susana! Foi um prazer conhecer-te. Até depois. Quando quiseres, manda-me um mail.
- Obrigada! Mando assim que chegar a casa. Boa noite e obrigada pelo café!
A minha apresentação foi um sucesso!

V – Um fabuloso destino

Já trocamos mails há duas semanas. Todos os dias. Várias vezes por dia. O Duarte dá aulas na faculdade. No departamento de Engenharias. Por isso nunca nos cruzamos muito e os horários divergem. Eu estou a fazer mestrado no departamento de Ciências Sociais. Conversamos sobre cinema, sobre música. Dei-lhe um disco com a minha banda sonora favorita. A do filme francês que mudou a minha vida. E ele adorou.
Trocámos números de telefone. Mas ainda nenhum ligou ao outro. Normalmente sou mais atrevida, mais espontânea. Sou apaixonada, arrebatadora. E vivo no limite. Gosto de vertigem. O Duarte é mais contido, ponderado, calmo. E tem um ar triste e sombrio. Eu sou viva e alegre. Complementamo-nos, acho. Ele é o sedutor, e eu a provocadora. Ele acalma-me e eu dou-lhe adrenalina.
Sexta-feira à noite. Toca o telefone. É ele.
- Ouvi dizer que há um bar onde têm um chocolate quente fantástico. Queres sair?
- Claro!
- Vou-te buscar a casa, então? Como se chega até aí?
- Não, eu vou ter contigo ao bar. Encontramo-nos no parque de estacionamento.
E nestas alturas, uma rapariga nunca tem nada decente no armário, por mais que gaste dinheiro em roupa. Que se lixe! Estou bem assim, e é assim mesmo que eu vou. Não vamos demorar. Só um toque do meu perfume antes de sair. E confesso: no semáforo ponho rímel e gloss.
Chegamos ao bar. Chocolate quente com chantilly para os dois. Sugestão minha. Damo-nos bem, sem dúvida. A conversa flui naturalmente. Com o Duarte não tenho artifícios, nem máscaras nem capas. Sou eu, só. No mais puro de mim. E ele é genuíno.
Saímos do bar e sentamo-nos no carro dele à conversa. Dez minutos depois eu pergunto:
- Consegues conduzir e falar ao mesmo tempo?
- Claro!
- Então arranca! Vamos dar uma volta!
- Onde Susana?
- Não sei ainda. Vamos andando.
Ele liga o rádio. O disco é o que eu lhe dei. Óptimo para viajar! Sem destino. No encalço de um fabuloso destino. Oiço a voz dele, misturada com a música. Falamos de música e reparo que o Duarte tem as portas do carro cheias de discos, nos quais eu pego para descobrir do que ele gosta.
O som é inspirado. Um piano nítido e puro. Uma caixinha de música nostálgica e alegre. Cordas vibrantes. Sinto o toque dos dedos dele nos meus. Eléctrico. Foi com se tivesse apanhado um choque! Naquele instante em que eu peguei nos discos e fiz uma pergunta. E ele tocou nos meus dedos. Tocou-me! Nas mãos. Tem uns dedos lindos... E a banda sonora em viagem. O piano. Os dedos dele. Senti um acorde de arrepio, um pizzicatto de desejo, uma harmonia de mim, uma sinfonia de sentidos despertos. Desde aí o odor dele é mais nítido, o seu toque mais profundo, o olhar mais penetrante, os sons mais constantes. Só o sabor dele é uma incógnita.
Imagino os dedos dele no meu cabelo, na minha face, nos meus lábios. Imagino os meus dedos nas suas mãos, na barba, na boca dele. Cada fragmento de mim uma tecla. Como se fosse um piano. O da banda sonora. Ou outro qualquer. Toca-me.
Tudo em mim está mais desperto. Alerta. Vigilante. À espera de um toque mais. Por mais leve que seja.
Viajamos horas sem destino. Sem olhar para o tempo. Só nós.
Revejo cada momento dessa noite como um filme. Corto e separo os pedacinhos de película, para os observar calmamente. E volto a juntá-los e a revê-los. Ouço a banda sonora e lembro-me dele. Uma caixinha de música e imagino o seu olhar. O som do piano toca-me. E eu imagino o toque dele. Ao som da valsa rio e choro ao lembrar-me do Duarte. Acordes graves como a sua expressão triste e escura. Tinidos agudos de sorrisos cúmplices. Um fabuloso destino...

VI – Túlipas brancas

Agora é assim. Adormeço e acordo com ele. Com a presença dele, no que é mais visceral em mim. Todos os dias. Quando não o posso ver ou ouvir, sinto-o de uma tal maneira, te tal forma perto, que dói.
Está a ficar perigosamente dentro de mim, esta saudade, este querer. Esta esperança.
Quero-o de uma maneira contraditória. Sôfrega e calma, instintiva e cautelosa, animal e pura.
Ao cair do pano partilham-se segredos, suspiros, desejos. Palavras de conforto, de colo. Atrás do pano somos só nós. Mais ninguém.
Caiu o pano. Estamos juntos. Sempre. Há cinco meses.
Penso nele todo o dia, reportada nas mais variadas coisas aparentemente insignificantes. Para mim significam saudade. Memórias dele. O meu ritmo mudou. Sigo o seu compasso agora.
Quase o sinto aqui. Quase saboreio. Quente, puro e intenso como o chocolate. Doce como natas açucaradas. Chocolate quente com chantilly.
Sexta-feira. Cheguei à faculdade e o Duarte já estava à minha espera à porta da sala. Com um enorme ramo de túlipas brancas. As minhas favoritas. Ele sabe. Oferece-me uma túlipa branca todas as sextas-feiras. Depois das aulas combinamos o chocolate quente do costume.
Finalmente acabaram as aulas. Vou ter com o Duarte à entrada do edifício e saímos de mãos dadas. Paramos no semáforo à espera de atravessar. Sussurro no ouvido dele:
- Adoro-te!
- O quê?
Fica verde para os peões. Grito bem alto:
- Adoro-te!
E atravesso a correr para o outro lado. Viro-me para trás e fico a vê-lo dirigir-se com muita calma, a fazer-se esperar. A fazer charme. Sorrio de ternura e alegria. Olho para a direita e vejo um táxi em alta velocidade. Não vai parar. O pânico apodera-se de mim. Olho para o Duarte e abro a boca para gritar, mas não me sai nenhum som.
Lembro-me dos sons que seguiram o meu silêncio. O embate, um som grave e seco. A travagem, longa e aguda. As preces e o choro daquele homem, que acabou de cometer um crime. Demasiado tarde para chorar. Espero que vá preso. Olho para a esquerda e vejo o Duarte estendido no chão, virado para baixo, com uma perna numa posição anormal e uma visível fractura no braço. Oiço o meu batimento cardíaco com uma nitidez impressionante. Estou ausente de mim, do meu corpo, da realidade. Estou fria e lúcida.
Há pessoas que se aproximam do corpo inerte e grito-lhes para se afastarem e não tocarem no corpo. Ligo para o 112. identifico-me, calmamente e descrevo minuciosamente a posição do Duarte. Aproximo a cara do rosto dele. Respira. Olho para as mãos dele. Sinto-lhe o pulso. Tem sinais vitais.
Não sei quanto tempo passa até chegar a ambulância. Vamos para o hospital. Sou barrada a uma determinada altura. Um enfermeiro vem ter comigo, com um copo de água na mão, e diz-me para ter calma que em breve vou ter notícias.
Calma? Acho que desmaiei nos braços dele.
- Como se sente? – pergunta o enfermeiro assim que recuperei os sentidos.
Estou a tremer. Não me apetece falar. Recuso-me. Olho para a porta onde fui barrada, na esperança de que ele entenda o meu sinal.
- Assim que houver novidades, o doutor vem falar consigo.
Tem uma pronúncia estranha o enfermeiro.
- O meu nome é Lubic. Vou deixá-la aqui por uns minutos, mas se precisar, chame-me.
- Lubic?
- Sou polaco.
Ao fim de algum tempo, aparece um médico com um olhar grave e sério. Fala com o enfermeiro polaco, que aponta para mim e se dirige à máquina da água. Pressinto que me vão dar água outra vez. Isso nunca são boas notícias. Recomeço a tremer.
- Boa noite. Está com o Duarte Santa-Clara?
- Sim, sou namorada.
- O paciente está em coma. Sofreu um profundo traumatismo. Os sinais vitais são estáveis, mas não podemos prever se e quando vai acordar. Pode ir vê-lo agora, e passar a noite se quiser. Mas aconselho-a a ir para casa descansar. Logo lhe daremos mais notícias.
O paciente está em coma. Se e quando vai acordar? Pode ir para casa? Surreal toda esta abordagem. Ainda não assimilei tudo o que o médico me disse. Coma. Quando acordar. Se acordar.
Olho para as mãos e percebo que ainda não larguei as túlipas brancas.

VII – Aviso

Passo os dias no hospital agora. À cabeceira do Duarte. Converso com ele. Como se me pudesse ouvir. Lubic, o enfermeiro polaco, tornou-se agora meu amigo. Explicou-me que não se sabe ao certo se os pacientes em coma nos conseguem ouvir, mas acredita-se que sim. Eu acredito. Por isso converso com o Duarte. Falo sobre o meu dia quando não estou no hospital, sobre as pessoas que o visitam, sobre nós. Conto-lhe a nossa história. E ponho música para ele. Várias coisas. Mas sobretudo a banda sonora do filme francês, que nos acompanha sempre. E enquanto lhe levanto as pernas e movimento os braços, digo-lhe que estamos a dançar. E que vamos dançar quando ele recuperar.
Na primeira semana, observei o Lubic a fazer exercícios ao corpo do Duarte. Explicou-me que são necessários para que os músculos não atrofiem. E explicou-me como os fazer. Desde esse dia, sou eu que faço exercício com o Duarte. Todos os dias. Já passaram dez semanas.
Às vezes penso que ele quer reagir e não consegue. Mas eu sei que ele me ouve. Quando posso fico com ele de noite também. À espera que acorde, que saia do coma. Quero poder estar aqui quando ele acordar. Se e quando ele acordar.
Recebi uma proposta para ir trabalhar para a National Gallery em Londres. Mas por mais tentador que seja, não posso abandonar o Duarte. Disse que ia pensar. Mas não tenho muito tempo.
Os dias no hospital são todos iguais. Os sons da máquina à qual o Duarte está ligado. As notícias à uma da tarde e às oito da noite. Faço questão que o Duarte as oiça, para estar a par do que se passa no mundo. Os exercícios. A higiene do Duarte, pela qual me deixaram ser responsável também. Todas as sextas-feiras lhe trago uma túlipa branca. Saio depois do jantar para ir buscar um chocolate quente com chantilly, e volto para o beber ao lado dele. Como fazíamos sempre. Quero manter todos os nossos rituais. Acho que vai ser importante para a recuperação dele.
Todos são muito atenciosos comigo no hospital. E reconheço que tenho privilégios. Talvez se sintam comovidos por ver a minha insistência na recuperação do Duarte. Ou talvez sejam assim com os familiares dos pacientes em coma. Uma destas noites trouxe o filme francês cuja banda sonora gostamos tanto. Vi-o enquanto segurava a mão do Duarte. A determinada altura olhei para o lado e reparei que o Lubic nos observava, comovido.
No fim do filme ponho o disco a tocar. Na faixa preferida do Duarte. Agarro na mão dele e beijo-lha para me despedir.
Será possível? Senti. Muito de leve. Uma manifestação. O Duarte mexeu a mão! Será que imaginei? Corro a contar ao médico, que olha para mim com um ar céptico.
- É possível, mas improvável. Vá descansar. Não há nada que nos diga que ele vai acordar em breve. Provavelmente o que sentiu foi o seu próprio movimento da mão.
Fico arrasada! Que angústia. Resolvo ficar. Esta noite fico de alerta. Ele vai acordar. Eu sei. Eu sinto o Duarte como ninguém.

VIII – Doutora

Estou de rastos. Passei a noite quase em claro. Dormitei, mas pouco. Tinha tanta certeza de que esta noite ele ia acordar...
Levanto-me da cadeira e beijo a testa do Duarte.
- Vou ao bar tomar um café, querido. Já volto para os nossos exercícios diários.
Na casa de banho, passo a cara por água fria. Estou com um aspecto horrível. Doem-me as costas e a cabeça. Dirijo-me ao bar e encontro o Lubic no caminho.
- Ontem tenho a certeza que senti a mão dele mexer.
- É possível...
- Mas não provável?
- Nunca vamos saber. Devia ir para casa. Está com ar cansado.
- Tinha tanta certeza de que esta noite o Duarte ia sair do coma.
- Calma. Ele vai recuperar.
Peço café em chávena fria e uma torrada em que mal toco. Estou sem apetite. Tenho de voltar já para o quarto do Duarte. Está na hora da higiene e depois os exercícios diários às articulações.
Entro no quarto. Abro os estores. Ligo a aparelhagem e ponho um disco com sucessos dos 80’s. É o melhor para os exercícios.
- Vamos lá! Está na...
Detenho-me, ficando imediatamente muda com o que vejo. Quero falar e não consigo. O Duarte está de olhos abertos. Levanta os braços e olha-os. Olha à sua volta e percebe onde está. Olha para mim. Estou pregada ao chão. De surpresa e de alívio. De um sentimento tão intenso, que não o consigo verbalizar. Nem pensar. Fita-me longamente e diz:
- Doutora, o que se passa? Porque estou aqui?
Doutora?
- Duarte!
Aproximo-me e pego-lhe na mão com os olhos cheios de lágrimas e uma súbita rouquidão. Ele olha para mim, como se não fosse um comportamento normal.
- Doutora?
- Só um momento. Vou chamar o seu médico.
Saio do quarto a correr, deixando um rasto de perfume atrás de mim. Encosto-me à parede, sentindo-me aturdida. Doutora? Ele não me conhece! Chamo o Lubic e o médico. Dizem-me para esperar. Não compreendo o que se passa.
Duas horas depois o médico vem ter comigo.
- O paciente saiu do coma. No entanto, está amnésico. Não se lembra dos últimos meses da sua vida antes do acidente. Diz que não tem namorada. Não se lembra. É uma situação normal. Pode recuperar a memória ao fim de alguns meses. Está estável. Vamos mantê-lo aqui mais uns dias para observação, mas em breve terá alta. Quer telefonar para alguém?
Dez semanas e o médico trata o Duarte por paciente. Não deixo de reparar. Não se lembra de mim? Dos últimos meses? Quantos? Porquê?
- Ele vai lembrar-se. – O Lubic tenta tranquilizar-me. Sem sucesso. – pode demorar, mas ele vai acabar por se lembrar.
O meu telefone toca. É de Londres. Querem uma resposta hoje até ao final do dia.
Não se lembra. Não tem namorada. Quero telefonar, sim. Ligo para um familiar do Duarte a contar a novidade. A partir daqui só posso esperar que ele se lembre. Será que um dia ele vai saber? Será que um dia o Duarte se vai lembrar de mim?
Volto ao quarto. Levaram-no para fazer exames. Tiro as minhas coisas do quarto. E saio. Antes que alguém me veja.
Não se lembra porquê? Fui acometida de um sentimento egoísta de consternação. Não se lembra de mim?!
Quero fazer um telefonema, sim. Ligo para Londres. Na próxima sexta-feira estou de partida.
Sexta-feira. Tenho passado no hospital todos os dias. Não se lembra. Melhor assim. A ele não lhe vai doer a minha partida. Levo isto só comigo. Vai ter alta hoje ao fim da tarde. Quando eu já estiver longe. Procuro o Lubic e deixo-lhe uma túlipa branca. Para o Duarte.
- Diga-lhe que foi uma grande amiga. Que eu vou viajar. Não esperava isto Lubic. Fiquei aterrorizada. Como é que eu vou falar com ele, se ele não me conhece?
- Eu entendo. Mas deixar assim o país... se ele se lembrar de repente?
- E se ele nunca se lembrar?
- Pois... Boa viagem, Susana. E boa sorte. Visite-me quando chegar.
- Claro! Daqui a seis meses. Obrigada por tudo, Lubic.
E assim, deixo o hospital e o país, com uma mágoa e dor profundas. Abandonei o Duarte. Será que eu vou conseguir viver com isto?
Vou beber um chocolate quente antes de ir para o aeroporto.

XIX – Café em chávena fria

Quinta-feira. Londres. Como sempre, está a chover. Das coisas que mais falta senti durante a minha estada fora de Portugal, foi o tempo ameno. Mas gostei de cá estar. Aprendi imenso e levo na bagagem experiência que me vai permitir desenvolver projectos em Lisboa.
Como se esperaria de Gatwick, o aeroporto está cheio de gente. O meu voo está atrasado devido ao meu tempo. Penso em ir tomar um café, mas rapidamente me arrependo da ideia. Seis meses em Inglaterra e ainda me custa sentir tanto a falta de uma bica. Assim que chegar ao Aeroporto da Portela, vou directa ao café!
Sento-me num banco, sem nada para fazer. Olho em volta. Os aeroportos são todos iguais. Os mesmos tipos de pessoas. Vários tipos de pessoas. Aqui se espera por um novo destino. Por um fabuloso destino? Ponho os head-phones e entrego-me ao fabuloso destino do meu disco favorito. Um fabuloso destino que um dia achei que ia ter com o Duarte... que será feito dele? Nunca o esqueci. Nunca consegui. Será que ele se lembrou? O que será que lhe aconteceu?
A resposta aparece à minha frente. É ele? Não pode ser! É mesmo o Duarte. Dockers, camisa branca, blusão de jeans. Olhar triste e distante. Tem um saco pequeno de viagem e um porta-fatos. Fixo o olhar nele. E ele olha para mim. Tremo, como na primeira quinta-feira.
Fixou o olhar em mim. Será que ele sabe quem eu sou? Vejo-o caminhar lentamente na minha direcção. Oiço o meu ritmo cardíaco a uma velocidade estonteante. Faz um sorriso inacreditavelmente charmoso, como ele só. Senta-se num lugar mesmo à minha frente e fixa-me. E eu olho para ele.
Ao fim de uma hora, o Duarte levanta-se e vejo-o caminhar decidido para o meu lugar.
- Do you speak english?
O que é que eu lhe digo? Estou prestes a desmaiar, mas contenho a minha ansiedade e sem pensar respondo:
- Eu sou portuguesa.
Que resposta tão estúpida...
- Dá para notar que sou português? – E sorri. Toca com uma mão no rosto, como se eu pudesse adivinhar a nacionalidade dele pela cara.
- Improvisei...
- Eu sou o Duarte.
- Susana.
- Vai voltar para Portugal?
- Sim.
- Então vamos juntos! Fantástico. Quer ir lanchar?
Como? Tenho quase a certeza de que vou desmaiar.
- Eu tomava um café, mas só em Lisboa! Já tenho saudades de uma bica.
- Então está combinado. Lanchamos em Lisboa.
Conversamos durante todo o voo. Não faz a menor ideia de quem eu sou. Pergunta-me tudo. Veio a Londres para uma conferência. Todos os meus sentimentos voltam em catadupa, e a determinada altura, tenho de me levantar para ir à casa de banho. Choro compulsivamente. Ele não se lembra de mim... Que saudades do Duarte! Dava tudo para voltar a senti-lo. Queria tanto que ele se lembrasse. Não importa. Decidida a seduzi-lo, volto para o meu lugar com um objectivo: ele!
Chegamos a Lisboa e vamos lanchar.
- Duarte, pede-me um café, por favor. Em chávena fria.
- E agora, para onde vais, Susana?
- Para o hotel. Queres vir?
Directa. Fatal. Quero-o. Nem que seja só hoje.
- Dizes logo o que queres. Gosto disso! Vamos! Quero estar contigo. Até amanhã. Estou rendido! Deve ser do teu perfume...
Até amanhã...
Inacreditável como há coisas que não se esquecem. Há coisas que duas pessoas têm juntas que nunca se esquecem. Mesmo que o Duarte não faça a menor ideia de quem sou, algo em mim sabe que ele sente. Mas o que é memória em mim, é estranho para ele. Não sabe porque se sente assim, supostamente à primeira.
Quero sentir este sabor sempre...
Nunca o esqueci. Nunca o vou esquecer.
Talvez um dia lhe conte a verdade toda. Talvez amanhã.
Até amanhã Duarte...

X - Ao cair do pano

Acordei com um raio de luz a acariciar-me o rosto. Olho para o lado e vejo-a profundamente adormecida. Continuo com a estranha sensação de que a conhecia antes. Será isto aquilo a que chamam amor à primeira vista? Este entendimento, esta sensação de que conheço cada pedaço do corpo desta mulher desconhecida... até a maneira de dormir é estranha nela, e contudo tão familiar. Dorme de barriga para baixo com os braços cruzados por baixo do peito, e os pés um em cima do outro, em cruz. Parece um morcego. Sorrio. Tem as costas descobertas por debaixo do grande lençol branco. O cabelo cai para o lado deixando à vista a nuca perfeita e branca. Encosto o nariz e sinto-lhe o aroma do perfume. Um flash de memória perpassa-me o pensamento: Mania. Será o nome do perfume? Será que já senti este perfume em alguém? Nela? Susana.
Toco nos lindos ombros dela e chamo-a de leve. Dorme profundamente. Deve estar cheia de frio. Está gelada.
- Susana! Vá, acorda.
Abano-a. Nada.
- Susana!
O que é que se passa? Será possível que alguém durma assim? Viro-a para cima. O rosto pálido é atravessado por um leve sorriso. De quem está em paz. Também eu sinto paz com ela.
- Susana.
Algo se passa. Num rasgo de loucura começo a chamá-la cada vez mais alto. Agarro-a nos ombros com força e grito cada vez mais o nome dela. Mas... o que se passa? De repente, dou-me conta de que a Susana não vai acordar. Encosto a cara à boca dela. Nem o mais leve sopro. Olho para as mãos da Susana. Mais um flash de algo familiar. Sinto-lhe o pulso. Nada.
Será possível? Tento acordar do pesadelo, mas rapidamente concluo que não estou a sonhar. Não sei o que fazer. A rapariga morre num quarto de hotel? Passou a noite comigo e morre? Não a senti durante a noite. Será que se sentiu mal e não me acordou?
Definitivamente não consigo perceber o que aconteceu. Olho em volta e vejo a carteira dela em cima da cómoda. Chamo o 112? Ligo para a Recepção? Não sei o que fazer. Procuro dentro da carteira. Nenhuma referência. Nenhum nome nem telefone. Dentro do porta moedas as libras misturam-se com os euros. Uma bolsa com lenços de papel, gloss e rímel. Uma agenda só com compromissos. Nada de contactos. Um porta-chaves. Dois maços de cigarros. Três isqueiros. Uma embalagem de creme para as mãos. E um disco.
Esqueço-me de onde estou e em que situação me encontro. Abro o armário de frente para a cama e ponho o disco na aparelhagem. Sento-me ao lado do corpo nu e frio da Susana, por debaixo do pano. E ouço.
Reconheço logo os primeiros acordes. Susana! É ela. Lembrei-me. A Susana é a minha namorada. Conhecemo-nos na faculdade onde eu dou aulas e ela está a fazer um mestrado. A Susana gosta desta música de um filme francês que ela adora. Gosta de chocolate quente com chantilly e de túlipas brancas. As favoritas dela. Susana! Começo a gritar desesperado. Choro e grito e agarro a Susana com toda a minha força. Susana! As túlipas. Eu lembro-me. Susana! Por favor, Susana. Sinto-lhe o perfume. Mania. Sempre adorou o costureiro italiano. Susana!
Acaba a primeira música e pouso-a de leve de novo na cama. Lembro-me do dia em que saímos da faculdade em direcção ao parque de estacionamento, para ir tomar um chocolate com chantilly. O semáforo está verde para os peões. A Susana sussurra-me ao ouvido que me adora e eu finjo não perceber. Grita que me adora e atravessa a correr, com uma alegria que só ela tem. Eu fico para trás, a fazer charme. Olho para o passeio e lá está ela a sorrir para mim, enquanto me vê aproximar. De repente, um esgar na cara dela, de susto. Abre a boca mas não sai nenhum som.
Depois, o escuro. Oiço a voz dela, a afastar as pessoas de mim. As sirenes. As luzes. Lembro-me. Estou deitado, com uma luz branca fortíssima por cima de mim. A Susana fala comigo. Todos os dias. E põe música. Enquanto levanta as minhas pernas e as obriga a exercitar, para não atrofiar os músculos, fala comigo. E eu oiço. Mas não consigo reagir. Oiço a música que ela traz para mim. Este é o disco favorito. O dela e o meu. Sinto as mãos dela. As nossas mãos... A primeira vez que lhe toquei nas mãos. Lembro-me. Susana!
Oiço todo o disco, até à última faixa e choro. De saudade. De desespero. Acabou.
Puxo o lençol e contemplo o seu belo corpo. A sua beleza, agora imortalizada. Para sempre.
Deixo cair o lençol, como se fosse uma parte de mim que nunca mais vou recuperar. Agora que me lembrei. Ao cair do pano vejo-a. Despida. Fria. Morta.
Ao cair do pano, estivemos juntos até ao limite de cada um. Ao cair do pano, foi tarde demais.
Caiu o pano. Fim.
- Bom dia. Recepção? Sim, queria pedir um chocolate quente com chantilly e um ramo de túlipas brancas. E chame por favor o 112. Quarto 1637. Obrigado.