quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Ao Cair do Pano

I – Ele passou

Ele passou sem dizer nada. Apenas um olhar... Passou por mim e eu estremeci com apenas um olhar longo e profundo. Só um olhar... De disfarçada indiferença. De quê mais?
- Mariana, vamos ao bar? Estou morta de fome! – digo eu para a minha amiga.
- Vamos. Mas o que é tu tens? Estás cá com uma cara...
- Nada, nada! Anda, mexe esse rabo.
Nada. O que lhe ia dizer? Nada. Não havia nada para dizer. E mesmo assim, aquele olhar cravado nos olhos...Atrevido! Olha mesmo nos olhos! Sem medo. Sem pudor.
Àquela hora o bar está cheio de gente, que aproveita o intervalo para jantar, ou simplesmente tomar um café, para aguentar as aulas ao fim de um dia de trabalho.
Olho para o lado à procura do resto da turma, para saber se guardaram uma mesa para nós. Mas encontrei outro alguém. É ele. Está ali. E a olhar para mim outra vez! Que descarado! Desvio o olhar, mas sinto-o pregado à nuca.
- Susana! O que foi? Estás a pensar em quê? Mas que cara! – pergunta-me a minha amiga.
- Mariana, está um homem a olhar para mim!
- Pudera! Há muitos homens que olham para ti, tola!
- Não estás a perceber! Está a olhar para mim fixamente. Detesto que me façam isto.
- Detestas? Susana, tu olhas assim para as pessoas! Mas quem é? É giro? Onde é que ele está?
- Ás minhas duas horas, de pé, a comer uma tosta. Aquele de camisa aos quadrados e jeans.
- Uau! Que borracho! Agora deixa lá o homem e vamos, que a aula está a começar!
E assim, fomos para mais uma aula.
Eu e a Mariana conhecemo-nos o ano passado, num desses trabalhos de hospedeiras que fazíamos durante a faculdade. Quando as aulas começaram, lá estava ela dentro da sala. Ficamos espantadíssimas de nos reencontrar-mos, e ainda por cima, no mesmo mestrado. Foi amizade à primeira vista pela segunda vez! Desde esse dia somos inseparáveis. Nós e a Migu. Tratamo-la por Migu, para abreviar o interminável nome da Maria de Guadalupe.
E ele continua a olhar. Mas que raio! Já me olharam muitas vezes, mas com esta lata... Quem será? Nunca o tinha visto cá. Um corpinho de bailarino destes não passa despercebido! É mesmo giro! E não pára de olhar para mim. Para mim!
Episódio esquecido. Por agora.
No fim das aulas saímos todas juntas como de costume, para ir comer uns hambúrgueres e por a conversa ainda mais em dia. O Gonçalo veio, como de costume, buscar a Migu, e finalmente chegamos ao parque de estacionamento.
- Mariana, vens atrás de mim?
- Como sempre Suse! Até já!
Todas as semanas é o mesmo ritual. Depois da calórica ceia, cada uma dirige-se a sua casa.
Quem me dera não ir já para casa. Já não aguento viver ali! Aluguei a casa ao Salvador, numa altura em que achava que ainda salvava alguma coisa...
Mas os caminhos desencontraram-se, graças à fraqueza dele, à minha falta de fibra, e claro, como não poderia deixar de ser, a uma ordinária qualquer que apareceu para destruir o que em tempos foi bom. Uma reles meretriz que conseguiu destruir um sonho. Ia ser em breve, o casamento. Caiu o pano e os sonhos desfizeram-se. A alegria acabou. O espectáculo acabou. Apagam-se as luzes, e no fim restam apenas os discos de algodão com restos de maquilhagem. De cara lavada, percebo que afinal não era tudo tão glamoroso assim.
O Brian Adams distrai-me no caminho para casa. Tenho sempre 80's no carro! Que oiço aos berros, vezes e vezes sem conta. Gosto de conduzir. Ao som da música, que me descontrai. Já fui, por mais do que uma vez, apanhada a cantar no trânsito. Sempre com o rádio aos berros. Sempre os eternos 80’s! Passo pelas lombas da avenida a uma velocidade estonteante, apesar de não ter pressa para chegar ao destino.
E eis que chego a casa. Esta casa deixa-me triste. Tenho que sair daqui! Mais uma mudança e uma página virada na vida.

II - Desalinho

Quinta-feira. Hoje é dia de aulas. Chego mais cedo à faculdade para beber um sumo de laranja. Abro o portátil, ponho os head-phones e fico a trabalhar com aquela fantástica luz do bar ao fim da tarde. Alguns minutos mais tarde vejo chegar o Pedro. Lá se vai o trabalho. Desligo tudo e começa a conversa habitual. Já conheço o Pedro há muitos anos, desde o liceu, altura em que fomos da mesma turma.
- Como estás Susana? Tudo bem? Já arranjaste um tipo para dar umas voltas ou ainda andas armada em viúva?
- Olá Pedro! Mas que subtil. Não, ainda não tenho um namorado novo...Mas já fiz algumas mudanças.
- Estou a ver. Essa cor de cabelo fica-te bem. E também não é preciso arranjares um namorado, ó parvinha. Basta um qualquer para te divertires um bocado e desenferrujar! Gosto da tua roupa nova. Estás toda gira! Eu também queria fazer algumas mudanças...Tenho de sair da casa onde estou. Está a cair aos bocados e eu estou farto!
- Eu também estou a ver se arranjo casa. Quero deixar a casa do Salvador o mais rápido possível!
- Olha, o que era giro era irmos morar juntos! O que dizes? Dividimos a renda e as contas. Vai ser o máximo, o que dizes?
- Olha, porque não? Tenho aqui o jornal se quiseres ver. É tudo caríssimo. Se for para dois, de facto é mais barato. Mas não achas estranho?
- Estranho porquê? Somos amigos há anos. E depois, que mal é que tu achas que eu te podia fazer?
- Nenhum, nenhum, Pedro. Desculpa. Só nunca pensado nisso. Podemos começar à procura então.
- Claro! Vai ser o máximo!
E assim decidi que ia viver com o Pedro. Caiu do céu hoje aquele rapaz! Finalmente encontrei a solução para sair daquela casa. Começo amanhã mesmo à procura de um apartamento!
Levanto-me, agora mais animada com a perspectiva da mudança e vou para a aula. Chego à porta da sala, onde já estão alguns colegas, e encosto-me à parede a fumar um cigarro, enquanto espero pelo professor. A Mariana está atrasada, tal como a Migu, e eu deixo-me ficar por ali na conversa com alguns colegas.
De repente, ele passa! Até fiquei sem fôlego! Lá está ele com o mesmo olhar de... nem sei. Desafio?
Sinto-me nua com um estúpido cigarro na mão, e a corar violentamente. Desvio a cara, com um olhar arrogante, como se não houvesse nada mais repugnante do que aquele olhar. Mas o meu segundo olhar trai-me. Seis segundos e eu esqueço-me do mundo. O professor passa por mim e eu nem dou por isso. Seis segundos.
Mas que parvoíce! De onde é que saiu o raio do homem? Não ouvi o elevador. Deve ter vindo pelas escadas. Talvez tenha aulas no andar de cima. Deve andar aqui num mestrado ou pós-graduação qualquer. Deve ser um dos “engomadinhos” de Gestão. Mas não tem ar de gestor ou informático. Até tem um certo desalinho que me agrada... Talvez seja aquela combinação entre “arrumadinho” de Dockers e camisa branca, e James Dean, com um blusão de jeans e uns ténis de montanha nos pés. O cabelo é preto, com uns laivos de cinza, que lhe dão um charme inacreditável! Moreno...
Seis segundos e eu descrevo-o como se tivesse passado o dia a olhar para ele. E como se a porcaria do cigarro não me estivesse a queimar os dedos!
Será que ele vai passar por aqui outra vez? Quem será ele?
Lá estou eu com parvoíces na cabeça! Quem será? Sei lá! Um parvo qualquer com ar presunçoso que me olha de alto a baixo porque é assim que deve olhar para as mulheres todas! Que estupidez!
E mesmo assim, a memória dos olhos dele tarda a abandonar o meu pensamento. Isto, claro, até chegarem as outras duas e trocarmos bilhetes no meio da aula sobre as novidades!
Episódio esquecido. Por agora.
No domingo eu, a Mariana e a Migu vamos lá para casa de novo, fazer mais um trabalho de grupo. Talvez o último que fazemos naquela casa. Hoje vou já começar a arrumar algumas coisas. Pode ser que encontre uma casa depressa. Para mim e para o Pedro. A ideia de ir morar com o meu amigo começa a fazer cada vez mais sentido, e eu sinto-me animada com a proposta. As coisas vão começar a mudar. E o desalinho da minha vida vai começar a resolver-se. Sinto-o!

III – Fitas e Confetti

Encontrei uma casa. Fui vê-la hoje com o Pedro e fechámos negócio com o senhorio, que, por alguma razão achou que somos casados. Já tenho a chave. Saio de casa com um caixote de livros na mão. Ligo o carro e o rádio. A casa nova não é longe daqui. Em cinco minutos estou à porta, com um caixote nas mãos, e uma sensação de positivismo e bem estar. Subo ao primeiro andar, pouso o caixote e abro a porta. Esta é a minha nova casa. A minha vida vai mudar aqui. Ligo o quadro e improviso um cinzeiro. Percorro as divisões, abro janelas, planeio espaços. Depois do cigarro à janela das traseiras, olho para o jardim e resolvo que é hoje que arrumo tudo.
Depois de comprar caixas de cartão no hipermercado, começo a separá-las por divisão e a encaixotar as centenas de livros. Hoje uma divisão tem de ficar pronta. Para ir embora. Durante três frenéticos dias arrumo em caixotes de cartão toda a minha vida. Enquanto separo livros e roupas para os colocar em diferentes caixas, reflicto. E separo pensamentos e memórias. Para também eles serem postos em diferentes compartimentos. As mudanças sempre me ajudaram a pensar. A ser diferente. A ser anfíbia, resistente. Adapto-me bem. É só mais uma mudança. A maior até hoje.
Quinta-feira. É hoje. Rebato os bancos do carro e passo o dia de uma casa para a outra, a transportar caixas, caixinhas, sacos, embrulhos, cabides. Tudo. Hoje. Chego à casa antiga e tiro as últimas coisas. Ponho o lixo no contentor. Deixo o lixo sentimental. Numa caixa branca com letras azuis. Lá deixei 3 anos. Três anos. E um caderno azul. O diário corrompido. Junto a ele estão três anos: bilhetes de cinema, tickets de portagens, recibos de hotéis e restaurantes, programas de concertos, fotografias, cartas, desenhos, um velho porta-chaves. E uma fita cor de rosa. Uma fita da minha benção... Não queria que aquela fita tivesse sido benzida pelo Cardeal, nesse dia tão feliz e tão triste. Fica a caixa. Com sonhos, risos, alegrias, promessas, juras de amor eterno, sacramentos por cumprir, músicas de embalar, partilhas, confetti de um Carnaval de três anos. No fim, fico só, qual palhaço rico e triste, com uma lágrima pintada no rosto e o coração de mimo partido. Desfeito. No fim do Carnaval, resta limpar o soalho dos restos de papel colorido e louça de plástico. Quando cai o pano, desmaquilham-se rostos e sonhos, e fica só a sujidade por limpar, numa sala abandonada com ecos de música longínquos e apagados.
Fecho a caixa. Fria. Coloco-a numa prateleira. Calma. Fecho a porta. Tranquila. Tiro a chave do porta-chaves e rodo-a duas vezes. Serena. Abro a caixa do correio e mando para lá a chave. Insensível. Ouço-a cair no chão e ecoar nas paredes despidas. Impávida. Fim. Imperturbável.

Ligo o carro e o rádio. Mudo o disco. Dirijo-me para a faculdade ao som (altíssimo) da banda sonora de um filme francês que mudou a minha vida. Hoje, a minha vida mudou. E finalmente choro. Compulsivamente. No trânsito. Choro. De desespero. De alívio. De frustação e mágoa. De revolta. De fim. De mudança. Choro.
Chego à porta da sala e olho para a Mariana e para a Migu, que vêem no meu rosto a expressão de mudança. Elas não sabiam que era hoje. Fiz tudo sozinha. Carreguei tudo sozinha.
- Consegui. Saí de casa. Hoje. Deixei aquela casa. Hoje fico na casa nova. Vim embora. Hoje. – e recomeço a chorar nos braços das minhas amigas que me envolvem com uma ternura de quem sabe o que dói.
- Calma Susana. Como é que tu estás? Precisas de alguma coisa? Queres ir ao bar comer uma sopinha? Uma água, talvez? – a Mariana sabe a importância da sopa quente em alturas de crise.
- Mas então, já arrumaste tudo? E já tens luz na casa nova? – a Migu e os pormenores técnicos... Despachada como ela só acrescenta – Fizeste o que tinhas de ter feito. Aquele anormal do Salvador é um ordinário. Estavas a dar cabo de ti. Vida nova, miúda!
Vida nova. Paro de chorar e dou conta de que mudei. Hoje. Caiu o pano. Estou despida de sentimentos. Mudei. Hoje.
Visto o meu melhor sorriso e entro na aula. Passei por ele quando cheguei. Mas vinha tão desolada que baixei os olhos e segui para o colo das minhas amigas. Ele olhou para mim. Mas acho que percebeu que eu não estava bem. Episódio esquecido. Por agora. Talvez ele vá ao bar no intervalo...

IV – A Apresentação

Três meses passaram desde a mudança para a casa nova. Já nem a chamo de casa nova. É pura e simplesmente a casa. Gosto de viver aqui.
Sexta-feira. Mais um dia de aulas. Será que o vou ver? Há meses que nos cruzamos nos corredores da faculdade e olhamos um para o outro. Sem dizer uma palavra. Só sorrimos. Meses de cumplicidade envergonhada. Nem uma palavra. Ninguém sabe. Ninguém repara. Não sei nada dele. Nem ele de mim. Digo a mim mesma que da próxima vez que o encontrar vou ganhar coragem e falar com ele. Isto nunca me aconteceu! Sou uma provocadora, e noutra situação já teria mandado um piropo qualquer. Mas nunca lhe disse nada. Coro de cada vez que ele se aproxima. Fico muda. O que é que se passa comigo?
Claro que a Mariana e a Migu já perceberam. Pelo menos a Mariana já me perguntou quem ele é. Mas eu também não sei. Estamos fartas de falar nisso. De como olhamos um para o outro e de como nenhum dos dois tem coragem de falar. Já lhe pusemos a alcunha de “Homem Mistério” e tudo. Mas ele, nada. Não lhe cai o pano. E eu estou na mesma.
Depois do regresso do bar no intervalo ficamos mais cinco minutos à porta da sala, enquanto eu fumo um cigarro. Viro-me de costas para a porta da sala e olho através das enormes janelas para o edifício da frente. E ele passa. Atravessa o meu campo de visão, com um olhar provocador e desafiante. Olha durante mais tempo agora como se isso pudesse provocar uma reacção em mim. Fixa os olhos nos meus.
Descaradamente sorrio. Despudoradamente. Olho-o de alto a baixo, como tem sido hábito dele durante as últimas semanas. E ele sorri de volta, desavergonhadamente. Sem uma palavra.
Fiquei estática como sempre. Não consegui dizer nada. Para a próxima, penso. Para a próxima é que é! Mando-lhe uma boca que lhe passam as manias num instante!
Mais um dia de aulas que acabou. A Migu não veio hoje e a Mariana foi ter com o Miguel, o ainda não assumido namorado. Nunca mais cumprimos o nosso ritual de fim de aulas. Tenho saudades. Mas gosto de ver a Mariana feliz, assim.
Amanhã falo com ele. Se ele passar por mim, é desta que não fico calada. Será que amanhã o vou ver? Já não entro na faculdade sem pensar nisto. Mas porque é que este homem mexe comigo desta maneira?
Episódio esquecido. Por agora.
A semana passa e as noites de aulas chegam de novo. Quinta-feira. Hoje tenho uma apresentação que ainda não está concluída. Vou para o bar trabalhar, na hora da primeira aula. O bar onde eu sei que ele vai. Em vez dele aparece-me o Pedro que sabe do meu desespero para acabar este trabalho. Lança-me um beijo de boa sorte e despede-se. Acabo o trabalho e vejo que está na hora do intervalo. Ligo à Mariana que me diz que a primeira aula se vai estender mais um pouco. Desço e atravesso o pátio enorme, branco. Entro no edifício novo, onde vou ter aulas e fico à porta da sala à espera. Parece que estou completamente sozinha no edifício. Não há ninguém à vista.
E eis que ele passa.
- Quer ir lanchar?
Está a falar comigo! Não posso acreditar. Faço um esforço para parecer calma e responder, mas só me sai um ar arrogante e uma resposta que eu não queria.
- Não obrigada! Vou ter uma apresentação agora.
- Está bem. Então boa sorte!
Vejo-o a descer a rampa, e num acesso de lucidez e tentativa de prolongar o diálogo, pergunto:
- Como se chama?
Ele, já no piso de baixo, diz-me o nome que eu não entendo. Mostro-lhe que não ouvi. Ele desaparece do meu campo de visão e eu começo a ouvir passos apressados na escada atrás de mim. É ele. Aqui. A 80 cm de mim.
- Duarte. Trata-me por tu.
- Está bem Duarte. Sou a Susana. Pois é, eu vou ter uma apresentação agora e estou à espera de entrar na sala.
- Eu vou lanchar que estou cheio de fome. Fica para a próxima.
- Sim, sem dúvida. Até logo.
E desaparece de novo, a correr pela escada abaixo. Do sítio onde estou vejo a porta de entrada no bar e a fila. Consigo vê-lo daqui. Nem acredito que ele falou comigo ao fim de todos estes meses. Entro na sala e pergunto quanto tempo falta. A Mariana faz-me sinal a dizer para ir beber um café e voltar às 9.
E é isso mesmo que eu vou fazer! Apareço de repente ao lado dele.
- Afinal acho que vou beber um cafézinho. A aula está atrasada. Só às 9! Em chávena fria, por favor.
Sempre tive manias com as bebidas quentes. Não gosto. Nem o café. Bebo quase frio. Quente, só o chocolate. Com chantilly.
Sentamo-nos a conversar e entendemo-nos bem. Falamos imenso sobre tudo, como se tivéssemos acumulado conversas ao longo destes meses.
Um quarto para as nove. Ficava aqui o resto da noite, mas o bar está a fechar e eu tenho uma apresentação. O Duarte acompanha-me até à sala, onde ficamos mais um pouco à conversa e eu lhe peço o e-mail.
- Boa apresentação Susana! Foi um prazer conhecer-te. Até depois. Quando quiseres, manda-me um mail.
- Obrigada! Mando assim que chegar a casa. Boa noite e obrigada pelo café!
A minha apresentação foi um sucesso!

V – Um fabuloso destino

Já trocamos mails há duas semanas. Todos os dias. Várias vezes por dia. O Duarte dá aulas na faculdade. No departamento de Engenharias. Por isso nunca nos cruzamos muito e os horários divergem. Eu estou a fazer mestrado no departamento de Ciências Sociais. Conversamos sobre cinema, sobre música. Dei-lhe um disco com a minha banda sonora favorita. A do filme francês que mudou a minha vida. E ele adorou.
Trocámos números de telefone. Mas ainda nenhum ligou ao outro. Normalmente sou mais atrevida, mais espontânea. Sou apaixonada, arrebatadora. E vivo no limite. Gosto de vertigem. O Duarte é mais contido, ponderado, calmo. E tem um ar triste e sombrio. Eu sou viva e alegre. Complementamo-nos, acho. Ele é o sedutor, e eu a provocadora. Ele acalma-me e eu dou-lhe adrenalina.
Sexta-feira à noite. Toca o telefone. É ele.
- Ouvi dizer que há um bar onde têm um chocolate quente fantástico. Queres sair?
- Claro!
- Vou-te buscar a casa, então? Como se chega até aí?
- Não, eu vou ter contigo ao bar. Encontramo-nos no parque de estacionamento.
E nestas alturas, uma rapariga nunca tem nada decente no armário, por mais que gaste dinheiro em roupa. Que se lixe! Estou bem assim, e é assim mesmo que eu vou. Não vamos demorar. Só um toque do meu perfume antes de sair. E confesso: no semáforo ponho rímel e gloss.
Chegamos ao bar. Chocolate quente com chantilly para os dois. Sugestão minha. Damo-nos bem, sem dúvida. A conversa flui naturalmente. Com o Duarte não tenho artifícios, nem máscaras nem capas. Sou eu, só. No mais puro de mim. E ele é genuíno.
Saímos do bar e sentamo-nos no carro dele à conversa. Dez minutos depois eu pergunto:
- Consegues conduzir e falar ao mesmo tempo?
- Claro!
- Então arranca! Vamos dar uma volta!
- Onde Susana?
- Não sei ainda. Vamos andando.
Ele liga o rádio. O disco é o que eu lhe dei. Óptimo para viajar! Sem destino. No encalço de um fabuloso destino. Oiço a voz dele, misturada com a música. Falamos de música e reparo que o Duarte tem as portas do carro cheias de discos, nos quais eu pego para descobrir do que ele gosta.
O som é inspirado. Um piano nítido e puro. Uma caixinha de música nostálgica e alegre. Cordas vibrantes. Sinto o toque dos dedos dele nos meus. Eléctrico. Foi com se tivesse apanhado um choque! Naquele instante em que eu peguei nos discos e fiz uma pergunta. E ele tocou nos meus dedos. Tocou-me! Nas mãos. Tem uns dedos lindos... E a banda sonora em viagem. O piano. Os dedos dele. Senti um acorde de arrepio, um pizzicatto de desejo, uma harmonia de mim, uma sinfonia de sentidos despertos. Desde aí o odor dele é mais nítido, o seu toque mais profundo, o olhar mais penetrante, os sons mais constantes. Só o sabor dele é uma incógnita.
Imagino os dedos dele no meu cabelo, na minha face, nos meus lábios. Imagino os meus dedos nas suas mãos, na barba, na boca dele. Cada fragmento de mim uma tecla. Como se fosse um piano. O da banda sonora. Ou outro qualquer. Toca-me.
Tudo em mim está mais desperto. Alerta. Vigilante. À espera de um toque mais. Por mais leve que seja.
Viajamos horas sem destino. Sem olhar para o tempo. Só nós.
Revejo cada momento dessa noite como um filme. Corto e separo os pedacinhos de película, para os observar calmamente. E volto a juntá-los e a revê-los. Ouço a banda sonora e lembro-me dele. Uma caixinha de música e imagino o seu olhar. O som do piano toca-me. E eu imagino o toque dele. Ao som da valsa rio e choro ao lembrar-me do Duarte. Acordes graves como a sua expressão triste e escura. Tinidos agudos de sorrisos cúmplices. Um fabuloso destino...

VI – Túlipas brancas

Agora é assim. Adormeço e acordo com ele. Com a presença dele, no que é mais visceral em mim. Todos os dias. Quando não o posso ver ou ouvir, sinto-o de uma tal maneira, te tal forma perto, que dói.
Está a ficar perigosamente dentro de mim, esta saudade, este querer. Esta esperança.
Quero-o de uma maneira contraditória. Sôfrega e calma, instintiva e cautelosa, animal e pura.
Ao cair do pano partilham-se segredos, suspiros, desejos. Palavras de conforto, de colo. Atrás do pano somos só nós. Mais ninguém.
Caiu o pano. Estamos juntos. Sempre. Há cinco meses.
Penso nele todo o dia, reportada nas mais variadas coisas aparentemente insignificantes. Para mim significam saudade. Memórias dele. O meu ritmo mudou. Sigo o seu compasso agora.
Quase o sinto aqui. Quase saboreio. Quente, puro e intenso como o chocolate. Doce como natas açucaradas. Chocolate quente com chantilly.
Sexta-feira. Cheguei à faculdade e o Duarte já estava à minha espera à porta da sala. Com um enorme ramo de túlipas brancas. As minhas favoritas. Ele sabe. Oferece-me uma túlipa branca todas as sextas-feiras. Depois das aulas combinamos o chocolate quente do costume.
Finalmente acabaram as aulas. Vou ter com o Duarte à entrada do edifício e saímos de mãos dadas. Paramos no semáforo à espera de atravessar. Sussurro no ouvido dele:
- Adoro-te!
- O quê?
Fica verde para os peões. Grito bem alto:
- Adoro-te!
E atravesso a correr para o outro lado. Viro-me para trás e fico a vê-lo dirigir-se com muita calma, a fazer-se esperar. A fazer charme. Sorrio de ternura e alegria. Olho para a direita e vejo um táxi em alta velocidade. Não vai parar. O pânico apodera-se de mim. Olho para o Duarte e abro a boca para gritar, mas não me sai nenhum som.
Lembro-me dos sons que seguiram o meu silêncio. O embate, um som grave e seco. A travagem, longa e aguda. As preces e o choro daquele homem, que acabou de cometer um crime. Demasiado tarde para chorar. Espero que vá preso. Olho para a esquerda e vejo o Duarte estendido no chão, virado para baixo, com uma perna numa posição anormal e uma visível fractura no braço. Oiço o meu batimento cardíaco com uma nitidez impressionante. Estou ausente de mim, do meu corpo, da realidade. Estou fria e lúcida.
Há pessoas que se aproximam do corpo inerte e grito-lhes para se afastarem e não tocarem no corpo. Ligo para o 112. identifico-me, calmamente e descrevo minuciosamente a posição do Duarte. Aproximo a cara do rosto dele. Respira. Olho para as mãos dele. Sinto-lhe o pulso. Tem sinais vitais.
Não sei quanto tempo passa até chegar a ambulância. Vamos para o hospital. Sou barrada a uma determinada altura. Um enfermeiro vem ter comigo, com um copo de água na mão, e diz-me para ter calma que em breve vou ter notícias.
Calma? Acho que desmaiei nos braços dele.
- Como se sente? – pergunta o enfermeiro assim que recuperei os sentidos.
Estou a tremer. Não me apetece falar. Recuso-me. Olho para a porta onde fui barrada, na esperança de que ele entenda o meu sinal.
- Assim que houver novidades, o doutor vem falar consigo.
Tem uma pronúncia estranha o enfermeiro.
- O meu nome é Lubic. Vou deixá-la aqui por uns minutos, mas se precisar, chame-me.
- Lubic?
- Sou polaco.
Ao fim de algum tempo, aparece um médico com um olhar grave e sério. Fala com o enfermeiro polaco, que aponta para mim e se dirige à máquina da água. Pressinto que me vão dar água outra vez. Isso nunca são boas notícias. Recomeço a tremer.
- Boa noite. Está com o Duarte Santa-Clara?
- Sim, sou namorada.
- O paciente está em coma. Sofreu um profundo traumatismo. Os sinais vitais são estáveis, mas não podemos prever se e quando vai acordar. Pode ir vê-lo agora, e passar a noite se quiser. Mas aconselho-a a ir para casa descansar. Logo lhe daremos mais notícias.
O paciente está em coma. Se e quando vai acordar? Pode ir para casa? Surreal toda esta abordagem. Ainda não assimilei tudo o que o médico me disse. Coma. Quando acordar. Se acordar.
Olho para as mãos e percebo que ainda não larguei as túlipas brancas.

VII – Aviso

Passo os dias no hospital agora. À cabeceira do Duarte. Converso com ele. Como se me pudesse ouvir. Lubic, o enfermeiro polaco, tornou-se agora meu amigo. Explicou-me que não se sabe ao certo se os pacientes em coma nos conseguem ouvir, mas acredita-se que sim. Eu acredito. Por isso converso com o Duarte. Falo sobre o meu dia quando não estou no hospital, sobre as pessoas que o visitam, sobre nós. Conto-lhe a nossa história. E ponho música para ele. Várias coisas. Mas sobretudo a banda sonora do filme francês, que nos acompanha sempre. E enquanto lhe levanto as pernas e movimento os braços, digo-lhe que estamos a dançar. E que vamos dançar quando ele recuperar.
Na primeira semana, observei o Lubic a fazer exercícios ao corpo do Duarte. Explicou-me que são necessários para que os músculos não atrofiem. E explicou-me como os fazer. Desde esse dia, sou eu que faço exercício com o Duarte. Todos os dias. Já passaram dez semanas.
Às vezes penso que ele quer reagir e não consegue. Mas eu sei que ele me ouve. Quando posso fico com ele de noite também. À espera que acorde, que saia do coma. Quero poder estar aqui quando ele acordar. Se e quando ele acordar.
Recebi uma proposta para ir trabalhar para a National Gallery em Londres. Mas por mais tentador que seja, não posso abandonar o Duarte. Disse que ia pensar. Mas não tenho muito tempo.
Os dias no hospital são todos iguais. Os sons da máquina à qual o Duarte está ligado. As notícias à uma da tarde e às oito da noite. Faço questão que o Duarte as oiça, para estar a par do que se passa no mundo. Os exercícios. A higiene do Duarte, pela qual me deixaram ser responsável também. Todas as sextas-feiras lhe trago uma túlipa branca. Saio depois do jantar para ir buscar um chocolate quente com chantilly, e volto para o beber ao lado dele. Como fazíamos sempre. Quero manter todos os nossos rituais. Acho que vai ser importante para a recuperação dele.
Todos são muito atenciosos comigo no hospital. E reconheço que tenho privilégios. Talvez se sintam comovidos por ver a minha insistência na recuperação do Duarte. Ou talvez sejam assim com os familiares dos pacientes em coma. Uma destas noites trouxe o filme francês cuja banda sonora gostamos tanto. Vi-o enquanto segurava a mão do Duarte. A determinada altura olhei para o lado e reparei que o Lubic nos observava, comovido.
No fim do filme ponho o disco a tocar. Na faixa preferida do Duarte. Agarro na mão dele e beijo-lha para me despedir.
Será possível? Senti. Muito de leve. Uma manifestação. O Duarte mexeu a mão! Será que imaginei? Corro a contar ao médico, que olha para mim com um ar céptico.
- É possível, mas improvável. Vá descansar. Não há nada que nos diga que ele vai acordar em breve. Provavelmente o que sentiu foi o seu próprio movimento da mão.
Fico arrasada! Que angústia. Resolvo ficar. Esta noite fico de alerta. Ele vai acordar. Eu sei. Eu sinto o Duarte como ninguém.

VIII – Doutora

Estou de rastos. Passei a noite quase em claro. Dormitei, mas pouco. Tinha tanta certeza de que esta noite ele ia acordar...
Levanto-me da cadeira e beijo a testa do Duarte.
- Vou ao bar tomar um café, querido. Já volto para os nossos exercícios diários.
Na casa de banho, passo a cara por água fria. Estou com um aspecto horrível. Doem-me as costas e a cabeça. Dirijo-me ao bar e encontro o Lubic no caminho.
- Ontem tenho a certeza que senti a mão dele mexer.
- É possível...
- Mas não provável?
- Nunca vamos saber. Devia ir para casa. Está com ar cansado.
- Tinha tanta certeza de que esta noite o Duarte ia sair do coma.
- Calma. Ele vai recuperar.
Peço café em chávena fria e uma torrada em que mal toco. Estou sem apetite. Tenho de voltar já para o quarto do Duarte. Está na hora da higiene e depois os exercícios diários às articulações.
Entro no quarto. Abro os estores. Ligo a aparelhagem e ponho um disco com sucessos dos 80’s. É o melhor para os exercícios.
- Vamos lá! Está na...
Detenho-me, ficando imediatamente muda com o que vejo. Quero falar e não consigo. O Duarte está de olhos abertos. Levanta os braços e olha-os. Olha à sua volta e percebe onde está. Olha para mim. Estou pregada ao chão. De surpresa e de alívio. De um sentimento tão intenso, que não o consigo verbalizar. Nem pensar. Fita-me longamente e diz:
- Doutora, o que se passa? Porque estou aqui?
Doutora?
- Duarte!
Aproximo-me e pego-lhe na mão com os olhos cheios de lágrimas e uma súbita rouquidão. Ele olha para mim, como se não fosse um comportamento normal.
- Doutora?
- Só um momento. Vou chamar o seu médico.
Saio do quarto a correr, deixando um rasto de perfume atrás de mim. Encosto-me à parede, sentindo-me aturdida. Doutora? Ele não me conhece! Chamo o Lubic e o médico. Dizem-me para esperar. Não compreendo o que se passa.
Duas horas depois o médico vem ter comigo.
- O paciente saiu do coma. No entanto, está amnésico. Não se lembra dos últimos meses da sua vida antes do acidente. Diz que não tem namorada. Não se lembra. É uma situação normal. Pode recuperar a memória ao fim de alguns meses. Está estável. Vamos mantê-lo aqui mais uns dias para observação, mas em breve terá alta. Quer telefonar para alguém?
Dez semanas e o médico trata o Duarte por paciente. Não deixo de reparar. Não se lembra de mim? Dos últimos meses? Quantos? Porquê?
- Ele vai lembrar-se. – O Lubic tenta tranquilizar-me. Sem sucesso. – pode demorar, mas ele vai acabar por se lembrar.
O meu telefone toca. É de Londres. Querem uma resposta hoje até ao final do dia.
Não se lembra. Não tem namorada. Quero telefonar, sim. Ligo para um familiar do Duarte a contar a novidade. A partir daqui só posso esperar que ele se lembre. Será que um dia ele vai saber? Será que um dia o Duarte se vai lembrar de mim?
Volto ao quarto. Levaram-no para fazer exames. Tiro as minhas coisas do quarto. E saio. Antes que alguém me veja.
Não se lembra porquê? Fui acometida de um sentimento egoísta de consternação. Não se lembra de mim?!
Quero fazer um telefonema, sim. Ligo para Londres. Na próxima sexta-feira estou de partida.
Sexta-feira. Tenho passado no hospital todos os dias. Não se lembra. Melhor assim. A ele não lhe vai doer a minha partida. Levo isto só comigo. Vai ter alta hoje ao fim da tarde. Quando eu já estiver longe. Procuro o Lubic e deixo-lhe uma túlipa branca. Para o Duarte.
- Diga-lhe que foi uma grande amiga. Que eu vou viajar. Não esperava isto Lubic. Fiquei aterrorizada. Como é que eu vou falar com ele, se ele não me conhece?
- Eu entendo. Mas deixar assim o país... se ele se lembrar de repente?
- E se ele nunca se lembrar?
- Pois... Boa viagem, Susana. E boa sorte. Visite-me quando chegar.
- Claro! Daqui a seis meses. Obrigada por tudo, Lubic.
E assim, deixo o hospital e o país, com uma mágoa e dor profundas. Abandonei o Duarte. Será que eu vou conseguir viver com isto?
Vou beber um chocolate quente antes de ir para o aeroporto.

XIX – Café em chávena fria

Quinta-feira. Londres. Como sempre, está a chover. Das coisas que mais falta senti durante a minha estada fora de Portugal, foi o tempo ameno. Mas gostei de cá estar. Aprendi imenso e levo na bagagem experiência que me vai permitir desenvolver projectos em Lisboa.
Como se esperaria de Gatwick, o aeroporto está cheio de gente. O meu voo está atrasado devido ao meu tempo. Penso em ir tomar um café, mas rapidamente me arrependo da ideia. Seis meses em Inglaterra e ainda me custa sentir tanto a falta de uma bica. Assim que chegar ao Aeroporto da Portela, vou directa ao café!
Sento-me num banco, sem nada para fazer. Olho em volta. Os aeroportos são todos iguais. Os mesmos tipos de pessoas. Vários tipos de pessoas. Aqui se espera por um novo destino. Por um fabuloso destino? Ponho os head-phones e entrego-me ao fabuloso destino do meu disco favorito. Um fabuloso destino que um dia achei que ia ter com o Duarte... que será feito dele? Nunca o esqueci. Nunca consegui. Será que ele se lembrou? O que será que lhe aconteceu?
A resposta aparece à minha frente. É ele? Não pode ser! É mesmo o Duarte. Dockers, camisa branca, blusão de jeans. Olhar triste e distante. Tem um saco pequeno de viagem e um porta-fatos. Fixo o olhar nele. E ele olha para mim. Tremo, como na primeira quinta-feira.
Fixou o olhar em mim. Será que ele sabe quem eu sou? Vejo-o caminhar lentamente na minha direcção. Oiço o meu ritmo cardíaco a uma velocidade estonteante. Faz um sorriso inacreditavelmente charmoso, como ele só. Senta-se num lugar mesmo à minha frente e fixa-me. E eu olho para ele.
Ao fim de uma hora, o Duarte levanta-se e vejo-o caminhar decidido para o meu lugar.
- Do you speak english?
O que é que eu lhe digo? Estou prestes a desmaiar, mas contenho a minha ansiedade e sem pensar respondo:
- Eu sou portuguesa.
Que resposta tão estúpida...
- Dá para notar que sou português? – E sorri. Toca com uma mão no rosto, como se eu pudesse adivinhar a nacionalidade dele pela cara.
- Improvisei...
- Eu sou o Duarte.
- Susana.
- Vai voltar para Portugal?
- Sim.
- Então vamos juntos! Fantástico. Quer ir lanchar?
Como? Tenho quase a certeza de que vou desmaiar.
- Eu tomava um café, mas só em Lisboa! Já tenho saudades de uma bica.
- Então está combinado. Lanchamos em Lisboa.
Conversamos durante todo o voo. Não faz a menor ideia de quem eu sou. Pergunta-me tudo. Veio a Londres para uma conferência. Todos os meus sentimentos voltam em catadupa, e a determinada altura, tenho de me levantar para ir à casa de banho. Choro compulsivamente. Ele não se lembra de mim... Que saudades do Duarte! Dava tudo para voltar a senti-lo. Queria tanto que ele se lembrasse. Não importa. Decidida a seduzi-lo, volto para o meu lugar com um objectivo: ele!
Chegamos a Lisboa e vamos lanchar.
- Duarte, pede-me um café, por favor. Em chávena fria.
- E agora, para onde vais, Susana?
- Para o hotel. Queres vir?
Directa. Fatal. Quero-o. Nem que seja só hoje.
- Dizes logo o que queres. Gosto disso! Vamos! Quero estar contigo. Até amanhã. Estou rendido! Deve ser do teu perfume...
Até amanhã...
Inacreditável como há coisas que não se esquecem. Há coisas que duas pessoas têm juntas que nunca se esquecem. Mesmo que o Duarte não faça a menor ideia de quem sou, algo em mim sabe que ele sente. Mas o que é memória em mim, é estranho para ele. Não sabe porque se sente assim, supostamente à primeira.
Quero sentir este sabor sempre...
Nunca o esqueci. Nunca o vou esquecer.
Talvez um dia lhe conte a verdade toda. Talvez amanhã.
Até amanhã Duarte...

X - Ao cair do pano

Acordei com um raio de luz a acariciar-me o rosto. Olho para o lado e vejo-a profundamente adormecida. Continuo com a estranha sensação de que a conhecia antes. Será isto aquilo a que chamam amor à primeira vista? Este entendimento, esta sensação de que conheço cada pedaço do corpo desta mulher desconhecida... até a maneira de dormir é estranha nela, e contudo tão familiar. Dorme de barriga para baixo com os braços cruzados por baixo do peito, e os pés um em cima do outro, em cruz. Parece um morcego. Sorrio. Tem as costas descobertas por debaixo do grande lençol branco. O cabelo cai para o lado deixando à vista a nuca perfeita e branca. Encosto o nariz e sinto-lhe o aroma do perfume. Um flash de memória perpassa-me o pensamento: Mania. Será o nome do perfume? Será que já senti este perfume em alguém? Nela? Susana.
Toco nos lindos ombros dela e chamo-a de leve. Dorme profundamente. Deve estar cheia de frio. Está gelada.
- Susana! Vá, acorda.
Abano-a. Nada.
- Susana!
O que é que se passa? Será possível que alguém durma assim? Viro-a para cima. O rosto pálido é atravessado por um leve sorriso. De quem está em paz. Também eu sinto paz com ela.
- Susana.
Algo se passa. Num rasgo de loucura começo a chamá-la cada vez mais alto. Agarro-a nos ombros com força e grito cada vez mais o nome dela. Mas... o que se passa? De repente, dou-me conta de que a Susana não vai acordar. Encosto a cara à boca dela. Nem o mais leve sopro. Olho para as mãos da Susana. Mais um flash de algo familiar. Sinto-lhe o pulso. Nada.
Será possível? Tento acordar do pesadelo, mas rapidamente concluo que não estou a sonhar. Não sei o que fazer. A rapariga morre num quarto de hotel? Passou a noite comigo e morre? Não a senti durante a noite. Será que se sentiu mal e não me acordou?
Definitivamente não consigo perceber o que aconteceu. Olho em volta e vejo a carteira dela em cima da cómoda. Chamo o 112? Ligo para a Recepção? Não sei o que fazer. Procuro dentro da carteira. Nenhuma referência. Nenhum nome nem telefone. Dentro do porta moedas as libras misturam-se com os euros. Uma bolsa com lenços de papel, gloss e rímel. Uma agenda só com compromissos. Nada de contactos. Um porta-chaves. Dois maços de cigarros. Três isqueiros. Uma embalagem de creme para as mãos. E um disco.
Esqueço-me de onde estou e em que situação me encontro. Abro o armário de frente para a cama e ponho o disco na aparelhagem. Sento-me ao lado do corpo nu e frio da Susana, por debaixo do pano. E ouço.
Reconheço logo os primeiros acordes. Susana! É ela. Lembrei-me. A Susana é a minha namorada. Conhecemo-nos na faculdade onde eu dou aulas e ela está a fazer um mestrado. A Susana gosta desta música de um filme francês que ela adora. Gosta de chocolate quente com chantilly e de túlipas brancas. As favoritas dela. Susana! Começo a gritar desesperado. Choro e grito e agarro a Susana com toda a minha força. Susana! As túlipas. Eu lembro-me. Susana! Por favor, Susana. Sinto-lhe o perfume. Mania. Sempre adorou o costureiro italiano. Susana!
Acaba a primeira música e pouso-a de leve de novo na cama. Lembro-me do dia em que saímos da faculdade em direcção ao parque de estacionamento, para ir tomar um chocolate com chantilly. O semáforo está verde para os peões. A Susana sussurra-me ao ouvido que me adora e eu finjo não perceber. Grita que me adora e atravessa a correr, com uma alegria que só ela tem. Eu fico para trás, a fazer charme. Olho para o passeio e lá está ela a sorrir para mim, enquanto me vê aproximar. De repente, um esgar na cara dela, de susto. Abre a boca mas não sai nenhum som.
Depois, o escuro. Oiço a voz dela, a afastar as pessoas de mim. As sirenes. As luzes. Lembro-me. Estou deitado, com uma luz branca fortíssima por cima de mim. A Susana fala comigo. Todos os dias. E põe música. Enquanto levanta as minhas pernas e as obriga a exercitar, para não atrofiar os músculos, fala comigo. E eu oiço. Mas não consigo reagir. Oiço a música que ela traz para mim. Este é o disco favorito. O dela e o meu. Sinto as mãos dela. As nossas mãos... A primeira vez que lhe toquei nas mãos. Lembro-me. Susana!
Oiço todo o disco, até à última faixa e choro. De saudade. De desespero. Acabou.
Puxo o lençol e contemplo o seu belo corpo. A sua beleza, agora imortalizada. Para sempre.
Deixo cair o lençol, como se fosse uma parte de mim que nunca mais vou recuperar. Agora que me lembrei. Ao cair do pano vejo-a. Despida. Fria. Morta.
Ao cair do pano, estivemos juntos até ao limite de cada um. Ao cair do pano, foi tarde demais.
Caiu o pano. Fim.
- Bom dia. Recepção? Sim, queria pedir um chocolate quente com chantilly e um ramo de túlipas brancas. E chame por favor o 112. Quarto 1637. Obrigado.

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